Por Mariana Junqueira
Quarta parte
A realidade sociocultural da região é estabelecida a partir de grande mestiçagem, composta pela população indígena, pelo negro, pelo paulista sertanista e pelo europeu, que afluíram para a região atrás de ouro. Em uma realidade ímpar, houve a configuração desse camponês do sul de Minas, que se parece muito, até hoje, com aqueles registros deixados por viajantes, mas que também está sujeito a transformações, influências e a novas práticas sociais.
Essa variante adaptativa teve lugar em toda a região do centro-sul, alguns municípios apenas após o surto minerador outros, a exemplo dos municípios do entorno do Parque Estadual da Serra do Papagaio, antes. Assim, toda a região se inseriu em uma economia estagnada, na qual as formas adaptativas arcaicas dos paulistas de antes voltam a ser a alternativa de subsistência, numa variante da cultura brasileira rústica. Falando agora o português (em substituição à outrora difundida Língua Geral, chamada de “nhengatu”), transformando-se na grande área cultural caipira. Que abrangia as Capitanias de Minas, São Paulo, Goiás e, também, do Mato Grosso.
Casa da comunidade tradicional
Dessa forma, a cultura caipira esteve vinculada a típicas formas de sociabilidade e subsistência, com a manutenção de um modo de vida baseado na coesão dos bairros, em um sistema de cooperação vicinal e solidariedade. Um exemplo de instituição solidária que assume grande importância no auxílio mútuo e no trabalho coletivo é o mutirão. Este institucionaliza o auxílio mútuo e as relações vicinais, por meio da reunião de moradores do bairro para a execução de tarefas árduas que não são possíveis apenas com o apoio do grupo familiar. Há, portanto, o caráter sociocultural desses eventos. Além de uma forma de associação para o trabalho, o mutirão se estabelece como um dos elementos importantes da constituição da sociabilidade e da vida social. Um outro aspecto relevante são as atividades lúdico-religiosas, no culto a algum santo, como festas, leilões, missas, novenas e rezas caseiras e bailes. É grande a importância do mutirão e da festa como elemento mobilizador para a unidade do bairro.
Para aproximar os habitantes do entorno do parque e do sul de Minas como comunidade caipira, lancei mão de algumas analogias que revelaram semelhança conceitual, entre elas está a existência do mutirão. Antigamente, juntavam-se até cinquenta homens para o trabalho, mas, com o êxodo rural, hoje, aglutinam-se grupos de dez, no máximo vinte companheiros. Costumam realizar o trabalho na lua minguante, quando as mulheres da casa preparam o alimento, sempre oferecendo algum tipo de carne, frango ou porco, acompanhados por arroz, feijão, farinha e, também a pinga consumida no final do dia. Essa prática antiga de solidariedade contribui para a coesão social e a reprodução do modo de vida.
A arquitetura das casas e a culinária são semelhantes. As casas têm formato quadrado, varanda, sala, cozinha, quarto e, algumas, banheiro. Além da simplicidade nas mobílias da casa, a alimentação consiste em arroz, feijão, farinha de milho, mandioca, banha de porco, alguma carne, café, bolinhos, broas e quitandas.
Morador da região
As festas também constituem um marco sociocultural; entre elas está a tradicional festa dos Santos Reis. Com comida e bebida oferecidas pelo dono da casa, há música e decoração características, como bandeirolas de festa junina, estandartes com a imagem do santo festejado. O grupo musical sempre tem cantadores, violeiros e percussionistas, além de muita animação e devoção. São também comuns as novenas e rezas, que acontecem nas capelas e casas dos moradores.
As representações, símbolos e mitos dessas populações vão caracterizar sua relação com o meio natural. A construção de representações mentais e dos conhecimentos empíricos acumulados por gerações vão marcar os sistemas tradicionais e os distinguir do modelo capitalista globalizado. Alguns elementos que as caracterizam são as relações simbióticas com a natureza e seu conhecimento profundo a respeito dela. É marcado pela noção da importância do território onde seu grupo se reproduz econômica e socialmente por várias gerações e pela manutenção das atividades de subsistência, com reduzida acumulação de capital. Muito relevante é a unidade familiar, doméstica e de parentesco, tanto para o desenvolvimento das atividades econômicas, como sociais e culturais, influenciada por grande simbologia, mitos e rituais, tais como a pesca, a caça e as atividades extrativas.
Essas sociedades começaram a ser definidas como tradicionais. Algumas delas são as caipiras, caiçaras, caboclas, sertanejas, quilombolas, ribeirinhas, extrativistas e indígenas, cuja identidade cultural difere das não tradicionais e insere-se no contexto das reivindicações do Estado, na luta pelo direito territorial e cultural. Dentre as populações não tradicionais, classificam-se os fazendeiros, veranistas, comerciantes, servidores públicos, empresários e empregados.
É claro que essa definição tem suas limitações, uma vez que todas as culturas possuem tradições próprias e qualquer tipologia baseada no conjunto de traços culturais tende a apresentar certa rigidez, dificultando, em última análise, a percepção dessas sociedades e culturas como fluxos dinâmicos e em transformação.
Esse é o caso da comunidade caipira, que tem passado por inúmeras transformações ao longo do tempo. Um exemplo relevante a ser observado é o sistema agrícola de coivara (queimadas de áreas restritas para a agricultura) cuja fertilidade se conseguia com as cinzas aliado à rotatividade dos terrenos, possibilitando o pousio e a recomposição das terras. Assim, grandes produções eram obtidas com esforço reduzido, possibilitando um equilíbrio social de uma economia autossuficiente. Contudo, com o avanço do sistema de propriedade, pela densidade demográfica e pela agricultura comercializada, houve a desarticulação desse sistema, demandando novas estratégias. Entre elas, está a passagem de uma economia autossuficiente, nas estruturas do bairro, para o âmbito de influência da economia capitalista, revelando uma situação de crise social e cultural do sistema.
Nesse contexto, alguns indivíduos acabam inserindo-se na condição de colono nas fazendas de café ou de assalariado rural, a serviço da pecuária; ou estabelecem parcerias em áreas mais remotas, onde os proprietários ainda não haviam se engajado na exploração de novos cultivos. Com a expansão do meio agrário para a economia mais dinâmica, ocorre a expulsão do caipira, só permitindo a sobrevivência desse modo de vida em áreas distantes, como é o caso dos municípios do entorno do Parque Estadual da Serra do Papagaio, no sul de Minas Gerais.
Mesmo nessas regiões mais distantes, as influências do processo de urbanização, o progresso industrial e a abertura de mercados acabaram por trazer novas necessidades, criando ou intensificando os vínculos com a cidade, acarretando a destruição de sua completa autonomia, uma vez que os liga, mesmo que remotamente, à economia moderna. Isso implica em uma reorganização da vida familiar e grupal e do ritmo de trabalho.
Esse processo de marginalização do caipira de São Paulo, que, ao mesmo tempo, almeja sua independência, mas não possui a posse da terra, acirrou sua situação de pobreza, o que ajudou a criar um estereótipo, para a classe culta, a respeito do homem do campo, principalmente na obra de Monteiro Lobato, com o personagem Jeca Tatu, apresentado de forma caricaturada, com características de um homem preguiçoso, com verminoses, desajeitado e bronco, sempre acocorado em seus calcanhares, a fumar seu cachimbo e a atirar cusparadas para o lado. O caipira se constituiria, assim, como um exemplo - para o homem da cidade, etnocêntrico, que se diz civilizado - da ausência de civilidade, de uma população rude e inferior, cuja vestimenta rústica, feita de tecidos grosseiros; a pouca educação; a vida sem conforto ou polidez os caracterizasse socioculturalmente, na literatura e no imaginário brasileiro. Trata-se de uma realidade que revela preconceito e negação da própria identidade caipira, até os dias de hoje. Em meio a esse cenário, é possível depreender por que as comunidades caipiras não se organizaram politicamente, nem se autodeclararam como tal, ao menos com a força necessária para apresentar sua identidade de forma afirmativa.
Essa imagem negativa é refutada por alguns autores com menor influência no pensamento social, como Cornélio Pires, que destaca que os caipiras são ótimos trabalhadores, e não vadios, mas que são assolados por crises de desânimo quando não trabalham em suas terras e são forçados a trabalhar como camaradas. Quando estão trabalhando em suas terras, segundo o autor, vontade não lhes falta. Ele destaca que, na realidade, são deveras mais inteligentes que os camponeses estrangeiros, diversificando muito suas habilidades.
O preconceito enseja a mobilidade da comunidade caipira e o seu desaparecimento em diversas regiões. Ele introduz uma desvalorização cultural; os que ainda existem não são os mesmos de antes, parados no tempo, mas transmutados no tempo e no espaço, ainda constituindo uma camada marginal à estrutura, engrossando as fileiras pela reivindicação camponesa da terra no Brasil.
Apesar de estarem restritos em áreas mais remotas da paulistânia, os caipiras persistiram a todo esse processo de concentração fundiária, avanço agrário e da sociedade urbana industrial, integrando-se e transformando-se sob novas influências capitalistas nas regiões mais dinâmicas e, também, mantendo características da sociabilidade caipira, nas áreas mais remotas. Apesar de não se declararem como tal, conforme mencionado acima, podem se enquadrar na nova definição de povos e comunidades tradicionais, regulamentada sob o Decreto 6.040, de sete de fevereiro de 2007. O Decreto institui a política nacional de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais.
Apesar das limitações da caracterização promulgada acima, ela legitima uma identidade diferenciada em um contexto sociopolítico, no plano de relações com o Estado e de políticas públicas, de instituições e agências privadas. Se, por um lado, ações dessa natureza procuram garantir a manutenção dos traços culturais; por outro, limitam o processo natural de transformações socioculturais.
O acesso às políticas públicas se constitui como um paradoxo, uma vez que introduz elementos transformadores e, ao mesmo tempo, imobiliza os povos e comunidades caracterizados como tradicionais, enquadrados dentro das definições da legislação. Tais instrumentos podem ser considerados como elementos de defesa em face ao próprio Estado, às unidades de conservação, ao agronegócio e às mineradoras. Essas políticas foram definidas no âmbito da educação, da habitação, da saúde e das infraestruturas; primeiro para as comunidades quilombolas e indígenas, e, posteriormente, para as outras comunidades tradicionais.
Festa de Reis
Na região estudada, a relação das unidades de conservação com a população do entorno não leva em consideração esse vínculo simbólico com a terra. As mudanças são impostas, sem que suas raízes tradicionais sejam valorizadas. Os integrantes das comunidades acabam por não acessar os direitos instituídos por essa política pública, inserindo-se, nos parâmetros do Estado, como camponeses com conflitos territoriais.
Enfim, é inegável que o território esteja relacionado com a construção das identidades das comunidades tradicionais, mesmo que ainda não tenham se autodeclarado, isso pode acontecer caso a comunidade queira, e na medida que se organizem politicamente, podem reivindicar o nome que melhor os representem. O que poderia dar um novo direcionamento às políticas de Estado para a região, pois, no entorno do PESP, ao invés da comunidade se deparar com as políticas públicas de legitimação cultural e étnica, conecta-se com políticas ambientais de instalação de unidades de conservação.