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Aiuruoca - Notícias
24/10/2013 16h09

Personagens que fazem parte da Nossa História - Elogio de Francisco Sales, o Quito

Elogio de Francisco Sales deixou seu legado na cidade e Aiuruoca.

Por Gilberto Nable

 

Dele me ficou a imagem espiritual de um pai. Não a biológica, pois não tínhamos nada em comum na aparência física. Nesta vida passageira não escolhemos os parentes, mas os amigos sim. E se você não possuir um pai, com quem possa dividir as questões de alma, será preciso inventar um.

O Quito quase nunca saiu de Aiuruoca, embora eu o convidasse várias vezes para ir a Belo Horizonte. Então, nossos encontros eram esparsos, quando eu visitava minha mãe, mas sempre festejados com muita conversa ao pé do fogão a lenha, uma ótima pinga ( definida por ele como cachaça de três cambotas - a primeira cambota na língua, a segunda no estômago, a terceira como salto mortal cumprimentando o fígado). Partilhamos as alegrias dessas reuniões que só foram aumentando com o fluir do tempo. Foi meu melhor amigo. Certamente também o mais sábio, o mais inteligente e o mais engraçado. Escutar os casos do Quito, contados com insuperável graça, foi um privilégio para mim, que tanto gosto de escrever. Por fim publiquei o conto Viagem de avião, em meu livro O menino Abstrato, conto dedicado a ele, e baseado na história que me relatou da sua primeira viagem aérea. A primeira, e, como ele deixou bem claro, a última! O que mais me impressionava nele: não propriamente as aptidões, mas diria a habilidade múltipla.

O Quito foi um ser multimídia, raro, o único que conheci. Ele conseguiu, e bem, se esmerar em tanta coisa, e fazer parte da comunidade aiuruocana, em todos seus aspectos, como ninguém o fez antes, nem depois. A lista é impressionante: trabalhou na administração do hospital, fez campanhas de vacina, aprendeu a manejar a papelada e a burocracia das internações, sabia muitos CIDs ( código de doenças) de cor e salteado. Foi dos principais criadores do Ginásio João XXIII (o que me possibilitou sair de Aiuruoca para continuar os estudos um pouco mais tarde), embora não tenha concluído, ele mesmo, nosso Quito, nem o ensino básico. Dá para acreditar? Criou a Fanfarra do Ginásio e deu-lhe uma dimensão nunca vista, certamente uma das melhores da região. Aprendeu sozinho a tocar todos os instrumentos e ensinava a meninada a arte de executá-los e marchar com ritmo. Intelectual, franzino e míope, nunca chutou uma bola. Entretanto organizou inúmeros campeonatos locais de futebol, apitou, marcou as faixas do campo, torceu, soltou foguetes, fez reuniões, criou regras. Interpretou peças de teatro. Jamais me esquecerei quando encenou a personagem de Sócrates, no julgamento desse filósofo, a própria figura da dignidade e da sabedoria humanas. Lia poemas como poucos. E sempre me emocionou ouvi-lo.

Grande e saudoso Quito. Vivia preocupado com os outros: se passavam necessidades, se tinham fome, com o enxoval da menina pobre que casara, com o músico bêbado devendo no armazém. Comunista até o fim, e dos poucos que leram Marx! Coração maior que o mundo. Sensibilidade requintada. Inteligência agudíssima. Cínico e irônico, sem dó, quando necessário. O cinismo, esse sal da nossa miséria. Embora tivesse posição política definida, nunca se candidatou a nenhum cargo, nem a vereador. E isso toca em outro ponto forte de sua personalidade: a indiferença por qualquer tipo de pompa ou solenidade vazia. Lembro que logo quando iniciamos nossa amizade eu lhe perguntei porque tinha o hábito de sempre varrer o passeio, na frente de sua casa, manhãzinha. A resposta que me deu, de tão bela e de tão simples, ficou guardada até hoje na minha memória: - Se todos varressem as frentes de suas casas, bem cedinho, a cidade amanheceria mais limpa...

Estivemos em Aiuruoca na semana passada, eu e minha mulher, a escritora Maria Célia Ferrarez. Visitamos a exposição comemorativa do centenário de nascimento do poeta Dantas Motta, muito bem montada por sinal. Numa das paredes encontrei uma pintura do Francisco Sales, nos seus vinte ou trinta anos, de óculos, com aquele olhar de peixe morto, meio zombeteiro, que era o seu. Foi amigo dos dois, de Dantas Motta e do dr. Julinho, que dá nome ao museu. Ao que me parece, poucos, hoje, se lembram do Quito e de sua importância para nossa cidade. Faltariam as homenagens? Não estou lastimando isso, ele não o faria.. Sinceramente, não sei. Do Dantas posso citar o verso sarcástico: “ sujeito a ser busteado em praça pública”. Mas lá está o busto de nosso poeta, exposto na praça, ainda que em matéria menos putrescível. Quanto ao Quito, como o Dantas, nunca foi dado a essas banalidades também: nomes de ruas, escolas, hospitais, bustos, discursos e vassalagens. Não se importava com nada disso. E ele, sim, poderia dizer, sem falsa modéstia, olhando seus conterrâneos nos olhos: “ as medalhas não têm brilho neste meu peito de herói”. Pois que brilho haveriam de ter?

 

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