VISÃO AMBIENTAL
A CHUVA É INOCENTE!
Os recentes eventos de precipitações pluviométricas intensas, com sérias consequências como perdas materiais e de vidas humanas, recoloca no centro do debate a questão: de quem é a culpa? Não sei, mas desconfio que essa obsessão de sempre querermos encontrar um culpado, tem explicação nas nossas origens judaico-cristã, que necessita de um culpado, ao menos para materializar a expiação das culpas de um "nós" coletivo.
É a velha história do bode expiatório. Segundo a Bíblia, o animal era retirado do rebanho para as cerimônias hebraicas do Yom Kippur, que celebra o Dia da Expiação. Já no Cristianismo, a história é interpretada como uma visão simbólica do autossacrifício de Cristo, que chama a si os pecados da humanidade, expiando-os pela via dolorosa.
Assim, um bode expiatório é alguém ou algo que é escolhido arbitrariamente para levar a culpa de uma calamidade, crime ou qualquer evento negativo, sem a constatação real dos fatos. É uma forma de se isentar de culpas individuais ou coletivas.
Mas voltemos à questão das culpas relacionadas com as consequências desastrosas das fortes chuvas que se abateram sobre o país, principalmente em São Paulo e na Região Serrana do Rio de Janeiro. Em alguns sistemas geomorfológicos, os solos encharcados deslizam, com ou sem vegetação, sendo que sua supressão potencializa o problema.
A Teoria de Gaia, proposta por James Lovelock, prega que a Terra, como um todo, é um ser vivo - compreendendo todos os elementos, inclusive geologia e clima, interagindo organicamente como qualquer ser que se altera, se modifica, desenvolvendo mecanismos de defesa e busca do equilíbrio. Aos seus movimentos denominamos fenômenos naturais.
Ora, se instalar em áreas de potencial movimentação de Gaia (encostas, principalmente as mais íngremes, e fundos de vale, na calha maior dos rios) é se expor aos riscos dos fenômenos naturais. Buscar justificativas em índices pluviométricos excepcionais tornou-se lugar comum, com descrédito cada vez maior.
Até porque esses índices vêm ocorrendo sistematicamente e, daqui pra frente, só devem agravar. A questão é buscar alternativas para adaptação face às mudanças climáticas. Não adianta ficar chorando sobre o leite derramado. Ou melhor, sobre as águas.
Culpar as chuvas pode ser uma resposta mais confortável para os políticos, mas jamais será uma solução para corrigir a omissão na gestão pública do território.
A legislação é antiga. O Código Florestal é da década de 1960. As Áreas de Preservação Permanente (APP) são um sistema de prevenção. É como um sinal de alerta, dizendo: ‘Atenção, a Gaia existe, ela se movimenta, áreas de risco!’
Entretanto, parece que o recado não foi claro. Há quem sugira que se coloquem placas nesses locais como as indefectíveis: "Não pise na grama" ou "Não dê comida aos animais".
Ainda assim, alguns setores pensam que a legislação deva ser flexibilizada, que o recado deva ser aliviado. Se chover em um dia a quantidade que as estatísticas apontam que deveria chover em um mês, o problema seria da chuva, que não está mais observando as séries históricas.
Muitas pessoas raciocinam, logicamente, que ao se instalarem em áreas aprovadas pelo poder público, pagando impostos e taxas, estariam observando os preceitos legais e confiantes na responsabilidade de seus governantes para a garantia da segurança de seu patrimônio e, mais ainda, de suas vidas. O mais grave é que a população vai se acostumando com a falta de responsabilidade do poder público e abrindo mão, cada vez mais, de seus direitos.
O poema “No Caminho com Mayakovsky”, de autoria do poeta fluminense Eduardo Alves da Costa, se aplica no caso com toda propriedade. Conformar-se com as perdas só as tornam maiores e mais graves.
A continuar crucificando as chuvas, só nos restaria saber onde estão Pilatos e os dois ladrões (ou seriam mais?) nesse calvário.