Por respeito à memória de um grande amigo, vou chamá-lo aqui apenas por um apelido que foi seu maior predicado.
Na semana seguinte ao Carnaval de 1960, entrei na Casa Gato Preto, então, localizada no prédio do Hotel Ponto Chic. Fui conversar sobre o Flamengo com Talúcio Palmieri. Fazia todos os dias. Ele já estava conversando com outro rubronegro, de Niterói, que eu ainda não conhecia. Costumava veranear em São Lourenço a cada ano, em geral na semana naquela época do ano.
Quando fomos apresentados e vi o seu chaveiro/escudo, de ouro, enorme, com o símbolo do Flamengo, queria logo manuseá-lo, ver com minhas próprias mãos. Simplório, que era bem mais velho que eu − uns vinte ou mais anos −, não me permitiu. Disse que para encostar naquele símbolo sagrad , teria que lavar as mãos antes, tal era o seu amor pelo Flamengo.
Com o tempo, ficamos amigos. Era uma pessoa simples e pura. Estando nosso time a vencer, estava tudo bem. Se estivesse numa fase ruim, entrava em depressão.
Trocávamos cartas. Era esta era a maneira mais comum de comunicação entre as pessoas que não moravam perto.
Qualquer coisa que ele mandasse fazer, como propaganda de seu estabelecimento comercial na antiga capital fluminense, tinha que vir com o símbolo do Flamengo. Ele não dava importância ao fato de poder perder fregueses em potencial que torcessem para outro time. E eu ia ganhando todas aqueles propagandas e as guardava − algumas ainda tenho até hoje−.
Um dia, todo feliz, mandou-me a primeira página de um jornal esportivo da época. Ele saíra em uma fotografia, perto do jogador Gérson. Era o início de sua carreira no Flamengo e ele se negava a transferir para a Itália. Dizia a manchete do jornal: Gérson finca pé e não vai para a Itália: −Sem mamãe, não vou nem para o céu .
Quando fui estudar no Rio, encontrávamo-nos frequentemente para ir ao Maracanã, ver o nosso Flamengo jogar.
Um dia, Simplório foi proibido pelo seu cardiologista de assistir ou mesmo de ouvir pelo rádio os jogos do Flamengo. Fiquei com pena dele. Que isto nunca me acontecesse.
(Ironia, hoje eu mesmo me proíbo de assistir pelo menos as decisões de campeonato onde o meu time está envolvido. Minha pressão não aguenta e procuro sair para o cinema, para a missa ou outro lugar qualquer. Meu dia também chegou. E hoje devo ser mais velho do que ele era, naquele tempo.)
Confesso que, em verdade, quando fui ficando menos imaturo e crescendo, houve momentos em que a conversa dele me cansava. Ele só falava no Flamengo e falava muito, sem parar. Não estava preocupado se a gente tinha algo a fazer. Como algumas pessoas que ainda andam por aí e que nem por isto deixamos de querer bem...
Simplório, como já disse, era muito puro. Acho que ele pensava tanto no Flamengo que não tinha tempo de entender de outros assuntos. Assim, dois fatos aconteceram que demonstraram isto, nas décadas de 70/80. O primeiro deles: três meses depois do meu casamento, quando esteve aqui, deu-me, de presente, um prato de parede pequeno, com a santa ceia, escrito: Lembrança de São Lourenço. O outro, em 1985, quando, minha esposa teve um problema de saúde. Eu contei a ele, em termos pouco populares, no cartão de Natal que me acostumei a mandar-lhe, ano após ano. Julguei que não houvesse dificuldades de que ele entendesse. Em sua resposta, ele, simplesmente deu-me os parabéns pelo acontecimento. É mole?
Em 1987 estive com ele a derradeira vez, em São Lourenço.
Em 1988, pela primeira vez, desde 1960, Simplório não deu as caras. Preocupado, procurei informar-me do porquê: ele estava com câncer.
No final de 1989, Simplório morreu. Aquele, de 1987, foi o 28º. e o nosso derradeiro encontro aqui
Simplório certamente está no Céu, assistindo sem medo algum de causar dano ao coração, a todos os jogos do seu Flamengo...