Mais barato que modelos estrangeiros e com tecnologia única, ele tem a missão de salvar as vidas daqueles que estão na fila do transplante cardíaco.
Ao caminhar pelos corredores do Instituto de Cardiologia Dante Pazzanese, em São Paulo, o engenheiro Aron de Andrade atravessa salas ocupadas por máquinas motorizadas, alicates, furadeiras, chaves de fenda e papéis riscados. Abre mais duas portas e, a passos cuidadosos, entra em um compartimento apertado, onde repousa sobre a mesa uma espécie de bomba conectada a tubos que a enchem de ar. Ele observa a peça inchar e desinchar ao lado de um computador que recolhe seus dados. O som do movimento é ofegante. Após examinar, retira os canos e pega o dispositivo na mão. “É isso aqui.”
De poliuretano, pouco maior que uma laranja e pesando 700 g, “isso” que Andrade segura é o protótipo do primeiro coração artificial desenvolvido no Brasil. Resultado de 14 anos de pesquisas comandadas por ele, a peça está, desde abril, pronta para ser aplicada em seres humanos. “Fizemos tudo aqui dentro: estudos, peças e testes”, diz o engenheiro. O dispositivo deve ser instalado em 5 pessoas com cardiopatia grave, a partir de junho. A ideia é que dê sobrevida aos pacientes até o recebimento do transplante. “São pessoas que não respondem a medicações, que podem morrer em questão de dias”, diz. Só em São Paulo, segundo a Central de Transplantes da Secretaria de Estado da Saúde, há 109 pessoas na fila de espera do transplante cardíaco. Grande parte precisando de uma doação o mais rápido possível.
Pelo mundo, os corações artificiais não são novidade. Desde 2001, existe um modelo consagrado. O coração natural é retirado na operação, e o artificial, no lugar dele, passa a ser responsável pelo bombeamento do sangue. No molde brasileiro, porém, nada é extraído. É o primeiro do mundo a funcionar junto ao órgão natural — ainda que enfraquecido. O coração de origem bombeia o sangue para o artificial, que faz o serviço pesado de distribuí-lo pelo corpo. De acordo com Andrade, as vantagens desse padrão são muitas. A primeira é que a cirurgia é mais simples. “Quando se tira o coração é preciso fazer canulação, suturar todas as saídas dele”, diz Andrade. “É muito mais complexo.”
Outro benefício de não retirar o órgão é que ele pode continuar ditando a frequência do bombeamento de sangue, o que não requer adaptação. Além disso, o modelo traria mais segurança. Se o coração artificial parasse por algum motivo, o natural enfraquecido ficaria como responsável pelo bombeamento. Daria tempo mais que suficiente para ir ao hospital e trocar o aparelho. “Nos modelos estrangeiros, se o coração falhasse, o paciente desmaiaria na hora”, diz Andrade.
Existe ainda uma quarta vantagem, mesmo que seja, segundo alguns médicos, pouco provável. Por estar no corpo do paciente sem ser exigido e mantendo sua frequência por meio do dispositivo artificial, cogita-se que o órgão natural possa ser recuperado depois de um bom tempo de uso. “É mais uma pretensão que possibilidade”, diz Luis Carlos Bodanese, chefe de cardiologia do Hospital São Lucas PUC-RS. “Em tese, o artificial pode diminuir a deterioração e até regredir os danos do original, mas é difícil que restaure a ponto de funcionar normalmente outra vez.”
Quanto tempo aguenta ?
Nessa primeira etapa, os corações artificiais brasileiros devem funcionar fora do corpo do paciente por um mês. Em um futuro próximo, os médicos acreditam que, se não houver falhas, os dispositivos possam ficar por mais tempo — e internamente. Algo que já acontece fora do país, como atesta o pastor americano Troy Golden, 47 anos. Portador de síndrome de Marfan, foi submetido, em setembro de 2010, a uma cirurgia e desde então vive com um coração artificial, desenvolvido pela empresa local SynCardia. “Apesar de todos os benefícios, o coração artificial traz alguns inconvenientes como o peso que carrego”, diz. O modelo inserido em Golden pesa 7 quilos, incluindo as duas baterias recarregáveis.
O cardiologista Doug Hortmanshof, que acompanha o caso de Golden, vê o órgão artificial como solução futura para diminuir as filas do transplante. “É preciso seguir buscando novas e melhores tecnologias, conciliando bons resultados e preços acessíveis”, diz. O modelo brasileiro parece estar no caminho certo. Além de trazer inovações, também é o mais barato do mundo. Feito por incentivo público — apoiado por Fapesp, CNPQ, Ministério da Saúde e Hospital do Coração de São Paulo —, custa R$ 60 mil. Os modelos estrangeiros, privados, chegam a R$ 500 mil. A estimativa é que, daqui a alguns anos, o coração artificial possa ser fornecido pelo SUS.
Mas e se falhar? Andrade e demais envolvidos no projeto estão otimistas. A única preocupação, com base em testes nos bezerros, é a coagulação. É que o sangue, em contato com material sintético, cria coágulos que entopem a bomba artificial ou vasos sanguíneos, prejudicando o fluxo. Para que não ocorra, a solução é injetar a quantidade exata de anticoagulante — o excesso pode causar hemorragia interna. Isso exigirá controle de perto das amostras de sangue dos pacientes. “Todos serão acompanhados o tempo todo dentro do hospital até o transplante”, diz Andrade.
No futuro, todas as medições poderão ser feitas à distância. “Estamos desenvolvendo uma interface sem fio que permitirá enviar em tempo real os os dados do controlador”, diz Denys Nicolosi, responsável pela parte eletrônica. Será mais uma tecnologia inédita do coração artificial do Brasil. O país receberá de peito aberto.