16/12/2022 14h10
Sem remédio, varíola dos macacos pode causar até cegueira
A demora no acesso ao tecovirimat, único remédio aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para tratamento da varÃola dos macacos, pode fazer a doença evoluir de forma desenfreada e com manifestação ocular atÃpica. Isso ocorreu em pelo menos dez pacientes da monkeypox (ou mpox) em São Paulo, tratados por Luciana Finamor, oftalmologista especializada em infecções oculares.
Em dois deles, a espera de 60 dias pelo medicamento provocou a cegueira de um dos olhos, quadro que a literatura existente até hoje não sabe determinar se é reversÃvel.
A última remessa de tecovirimat que chegou ao Brasil trouxe os tratamentos de dois pacientes em São Paulo, atendidos na rede pública, que eram acompanhados pela reportagem. Em ambos, a varÃola dos macacos evoluiu sem tratamento viral especÃfico por dois meses e de forma grave, transmitindo as feridas da pele para as córneas e comprometendo a visão de ambos até a cegueira.
Casos de manifestação ocular da varÃola dos macacos ainda são raros, mas já foram documentados. Em relatório de outubro, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla original em inglês) dos Estados Unidos alertou que a doença pode causar "sérias complicações" nos olhos, com cinco casos registrados no paÃs entre agosto e setembro, todos tratados com tecovirimat.
Os sinais aparecem depois que as feridas de pele já estão parcial ou totalmente cicatrizadas, cerca de 15 a 40 dias após o inÃcio dos sintomas mais comuns, como febre, dor e fadiga. Eles começam como uma irritação no olho, que pode ficar avermelhado, lacrimejante, com forte sensibilidade à luz e sensação de areia por trás da pálpebra, podendo evoluir até a perda da visão.
"Apesar de poucos, esses casos nos deixam angustiados porque tentamos todas as possibilidades e não conseguimos tratar. O paciente simplesmente não melhora", conta a médica Luciana Finamor, especializada em infecções oculares pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "Por isso, é importante ter acesso ao antiviral, para termos melhor condição de combater a doença."
Uma das hipóteses para esse quadro é a de autoinoculação causada pelos próprios pacientes, que transmitem o vÃrus ao olho por coçarem as feridas e depois levarem a mão ao rosto. Outra possibilidade é a de que, por ser um órgão imunoprivilegiado, o olho permite que o vÃrus fique "escondido" até causar um quadro inflamatório crônico impossÃvel de combater apenas com os anticorpos naturais.
"Hoje, eu só vejo vultos", relata Paulo (nome fictÃcio), gerente de restaurantes com 37 anos atendido por Luciana e cujos danos oculares pela varÃola dos macacos começaram a aparecer 27 dias depois que a doença manifestou os primeiros sinais. Os sintomas iniciais foram febre, dor e feridas na mão, boca e braço, em 7 de setembro.
Quase uma semana após ter sentido as primeiras irritações no olho, Paulo procurou um oftalmologista, onde foi indicado a usar uma combinação de colÃrios que não surtiu efeito. Ele foi a um segundo especialista, que desta vez iniciou um tratamento para herpes-zóister. Já era meados de outubro e 20 dias tinham se passado desde o inÃcio dos sintomas oculares quando ele finalmente conseguiu um diagnóstico correto.
"Eu enxergava pouco, mas a irritação era gigantesca", conta. "A fotofobia existia (no inÃcio da doença), porém não tão grande quanto hoje. Eu conseguia ir de carro à s consultas, hoje não dirijo mais. Perdi o reflexo do meu lado esquerdo por causa do olho; não consigo nem enxergar o retrovisor. Também não posso sair no sol que começo a chorar."
A história se repetiu com Felipe (nome fictÃcio), médico de 42 anos que também demorou 22 dias para ter a certeza de que a irritação ocular era um desdobramento da varÃola dos macacos, com a qual foi diagnosticado em 30 de agosto. "Tive uma piora muito grave. Teve dias que não enxergava nada. O olho ficou muito vermelho, eu não conseguia olhar para a claridade. Precisei ficar em um quarto escuro porque até a luz do celular e da televisão me causavam dor."
Sem acesso ao tecovirimat, Felipe começou a usar uma combinação de remédios para aliviar a dor e irritação dos olhos, com colÃrio e gel lubrificantes, pomada oftalmológica para dormir, um segundo colÃrio pingado de hora em hora e um terceiro, antibiótico, aplicado a cada seis horas. Mesmo sendo da área médica, ele conta que "vivia em função do olho" e precisou se afastar do trabalho, mas contou o motivo apenas aos chefes diretos.
"A maioria das pessoas não sabe que é por causa da monkeypox. Ainda tem muito estigma e isso pode me complicar", afirma. "Mas tive muito medo, porque sabia que não estava sendo tratado como deveria e achei que ficaria cego, perderia o olho ou precisaria de um transplante de córnea."
Paulo e Felipe falaram com a reportagem em novembro, três dias antes de a segunda remessa do tecovirimat ter chegado ao Brasil e quando ainda não sabiam sequer se ela viria ou surtiria efeito. Hoje, um mês após terem iniciado os tratamentos, o futuro ainda é incerto e a reversão total dos danos oculares não é garantida. Apesar de terem evoluÃdo bem, ambos mantêm cicatrizes na córnea e é possÃvel que precisem de um transplante para recuperarem totalmente a visão.
"Não podemos bater o martelo quanto a isso porque a doença tem o curso natural no corpo. Mas, baseado naquilo que vemos na literatura mundial, pelo menos no quadro oftalmológico o tecovirimat ajuda", comenta Luciana. "Ainda não temos visto casos oculares graves como aqui no Brasil, porque em outros paÃses eles estão usando muito cedo o antiviral, logo no inÃcio dos sintomas."
Questionado pelo Estadão, o Ministério da Saúde informou que os critérios para acesso ao tecovirimat são resultado laboratorial positivo com lesão visÃvel ou paciente internado com a forma grave da infecção. Para este segundo grupo, leva-se em conta a presença das seguintes manifestações clÃnicas: encefalite, pneumonite, lesões cutâneas com mais de 250 erupções pelo corpo, lesão extensa em mucosa oral e/ou lesão extensa em mucosa retal.
Segundo a pasta, até o momento foram entregues 28 tratamentos ao Brasil por doações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da fabricante. Desses, 16 chegaram em novembro, dos quais dez foram diretamente encaminhados aos pacientes elegÃveis.
Em nota, a Secretaria de Estado da Saúde (SES) de São Paulo informa que recebeu 11 pedidos para tratamento com tecovirimat durante o atual surto da varÃola dos macacos. A pasta também afirma seguir o protocolo de atendimento e definição clÃnica estabelecidos pelo Ministério da Saúde para os casos de manifestação ocular da doença.
Fonte: Estadão Conteúdo