Desde os primeiros tempos de minha vida acostumei-me a ver as mercadorias sendo levadas em nossa casa por funcionários de firmas ou pelos próprios vendedores. Era a lenha, o padeiro, o açougueiro, o armazém. Eram as pessoas da roça em seus burrinhos-cargueiros, os leiteiros, verdureiros e outros.
Sebastião da Casa Dutra era também o tocador de prato na Banda Musical da cidade. Chegava aos fundos da casa e gritava:
- É da Casa Dutra!
Aí, tirava seu lápis colocado na orelha e o bloquinho de páginas amarelas, com o nome da firma e ia anotando o pedido de minha mãe. Posteriormente a mercadoria chegava numa carroça de entregas.
Era um amigo e não só um vendedor de firma. A cada mês de junho, enchia um saco grande com todas as espécies de fogos de artifícios usados em festas juninas: busca-pé, bombinhas de todos os tipos, espanta-coió, e mandava de presente para a criançada. Como apreciávamos aquilo! Havia anos em que eu não aguentava esperar e ia andando até a Casa Dutra, para buscar o presente.
Existia um padeiro que vinha com sua grande cesta de bambu, trazendo todos os tipos de pães, salgados e doces, com aquele cheirinho de recém-saídos do forno. Rodeávamos o coitado e ficávamos apontando para mamãe o que queríamos para o nosso lanche. Havia um pão de coco delicioso, inesquecível. Não me lembro do nome do homem, mas lembro-me de que um dia machucou o dedo no bambu de sua cesta e começou a sangrar. Aí, começamos a chamá-lo de padeiro de sangue, nome pelo qual nos recordamos dele até hoje, em nossas conversas sobre o passado.
Rosinha era um negro homossexual alto, parecido com o Jorge Majestade. Usava um turbante na cabeça. Trabalhava em um açougue no Mercado Municipal. Chegava com seu tabuleiro com as carnes pedidas embrulhadas naquele papel grosso, cinza, que os açougues costumavam usar. Carregava na cabeça e por isto usava o turbante. Acho que ele se realizava, imaginando ser uma bela lavadeira, trazendo a trouxa. Como eram imensamente maiores os preconceitos contra homossexuais naquele tempo! Hoje, embora ainda haja, acredito que a sociedade aceitou muito mais a opção sexual de cada um. Um dia, mamãe foi buscar o dinheiro para pagar a carne que Rosinha trazia e quando voltou, ele estava na cozinha tomando um copo de água. Ficou louca, simplesmente porque era bicha. Será que ela achava que homossexualismo era uma doença contagiosa?
Quantos lenhadores passaram por minha vida! Chegavam em carroças trazendo lenha para o fogão. Como gostávamos de ficar subindo e brincando naquela lenha, enquanto ele ia a despejava no chão! Como aquilo nos sujava! Como era gostosa aquela comida e como ficou diferente quando veio o fogão a gás! Como a água do banho era quente, quando o sistema de aquecimento vinha do fogão a lenha! Anos atrás, atendi um velhinho dos Pintos Negreiros e emocionei-me quando me disse que cansou de entregar lenha lá em casa, quando eu era pequeno e que me conhecia desde então.
Minhas lembranças, agora, vão até o pessoal que vinha da roça, com os burrinhos-cargueiros, trazendo toda a espécie de mercadorias: frutas, verduras, frangos, fubá, ovos, feijão, queijos e mais outras coisas. Poucos sabem, na geração de hoje em dia, o quanto o frango era um alimento caro e importante, reservado para os almoços de domingo. Não existiam granjas. Eram frangos caipiras. A produção era menor e por isto era muito mais caro que a carne de vaca. Tudo que vinha da roça era gostoso, não existia ainda o uso indiscriminado de agrotóxicos. Era tudo mais artesanal. Engraçadas eram as roupas que esse pessoal punha. Quase sempre os homens de calças listradas, tipo daquela fazenda que se usava para pijamas, chamada de riscado de Itajubá, lembram-se?
Existia, por último, o leiteiro. Até hoje ainda existem em alguns locais os carroceiros que vendem o leite, mas tudo diferente de antes. As pessoas tornavam-se mais amigas. Aquele de quem mais me recordo era o que trazia da fazenda do José Jacob, amigo de meu pai. Sempre que passava eu acabava indo dar um passeio de carroça. Como isso era gostoso!
Hoje tudo está mudado. O romantismo acabou. A infância e a juventude também.
Existem as entregas a domicílio modernas. Pede-se por telefone, chegam em caminhonetes ou motos, existe o disk-pizza, o disk-água, o disk-tudo, o disk-entulho e o disk não sei o que mais.
Quem bom seria se existisse um disk-vida, entregue por Deus e, portanto gratuito, que nos proporcionasse ficar aqui por mais tempo do que aquele com que seremos aquinhoados...