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Opinião
13/03/2019 16h52

Dois irmãos e o Rio Verde

Por Henrique Selva Manara

Um conto das águas

“_Certa vez pequenas pedras miúdas se acumularam sob o sol em uma roda de conversa, discutiam entre si sobre quem eram elas. Seriam as lágrimas de um amanhecer distante, o primeiro amanhecer do mundo, assim disse a Pedra Rosa. Seriam as pontas dos cabelos cortados das estrelas, assim disse a Pedra Azul. Seriam a urina ressecada de um grande mamute, assim jurou a Pedra Amarela.” A beira do Rio Verde, João contava a história a sua irmã Berenice. Enquanto olhava nos olhos do irmão que brilhava embriagado a cada palavra proferida, Berenice criava as imagens internas daquelas personagens que aludiam a sonhos remotos. “_No calor da discussão, todas tentavam ter a voz mais alta, queriam que a sua verdade fosse a verdade de todas as pedras. Um vai e vem de era assim era assado efervesceu cada pedrinha, e o que era pedra não se cabia mais em seu próprio contorno. Cada forma redonda, quadrada, triangular, foi se abstraindo de suas superfícies, se liquefazendo, tornando cada passado uma gota misturada no presente, sem que se pudesse mais identificar onde terminava o início, onde se iniciava o fim, eram todas um grande movimento líquido, que descia para o não se ver mais. E assim nasceu o Rio Verde. Nem azul, nem amarelo, muito menos rosa.” Atrás de João, o Rio Verde passava parado, sua superfície era a mesma e era outra a cada momento. Berenice imaginava. “_ Se todas as pedrinhas pararem de gritar, será que elas voltarão a ser elas mesmas e não mais o rio que desce?” “_Dentro do rio, Berenice, mora um silêncio ensurdecedor, tão grande e pleno, que a maioria das pedras escolhe gritar uma ladainha, com medo de se perder no silêncio. Mas é ele que pode trazer o caminho de volta para casa, esse é o segredo que as pedrinhas não entendem Berenice.” Berenice ouvia o irmão calada, via a garrafa de pinga refletindo o sol dourado no rosto do irmão e em sua meninice pensava que ele se esquecia que no Rio Verde não viviam só as pedras, haviam também umas centenas de peixes, folhas e flores que ela aprendera na escola. Aprendera que havia muito mais vida do que o espelho nos permitia perceber. Tia Marta dissera, “_ Se não vivem ainda hoje, pelos menos um dia aquele rio tinha abrigado uma grande constelação de vidas das águas.” Berenice sabia que o irmão tinha medo da água, e por isso toda a tarde seguia até a margem com uma garrafa de pinga na mão. Era assim que ele conseguia se aproximar de todas as coisas que não conseguia transformar em palavras. Berenice pensava, “_ Pobre João, nem tudo que é poesia cabe na letra. Entra no rio irmão, deixe-se afogar”. (continua...)

A MAIOR VISÃO DE TODAS

A maior visão de todas
aconteceu na minha
tenra infância
eu, menino pio,
acreditava na hóstia
e no poder do
corpo de Cristo
transformado em pão
num mistério da trindade
que me ensinará
minha avó Geralda
acreditava nisso tudo
mas não entendia
acreditava porque
os adultos eram belos
e me acalentavam em
seus abraços carinhosos
acreditava que as coisas são.
Mas entre todos os adultos
havia um
soturno,
calado,
bravo,
sério,
com voz de trovão
voz que herdei
olhos por vezes furiosos,
voz de trovoada
e disposição constante
para trabalhar caminhando
dia a dia sob o sol
entregando
as mensagens dos distantes
vigiando portões
de parques e prédios.
Um homem humilde
de gostos humildes
pescar, passarinhos,
passarinhos que na infância
sempre era eu que os soltava
dando grandes prejuízos
ao homem humilde
Mas a maior visão de todas
não foi nenhuma dessas
a maior aconteceu numa tarde
na cidade onde
as raízes se plantaram
Estava eu caminhando
perto de casa
e ouço urros de um urso
Como um Viking montado
num puro sangue marrom
vi meu Pai como nunca
o tinha visto antes
era um fauno
em pura liberdade
com uma barba negra
grossa
e olhos de quem
tem sede de vida
vi meu Pai
em imagens cinematográficas
correndo nesse cavalo marrom
puro sangue
e parando só
com as patas traseiras
misturando homemcavalo,
cavalohomem,
um sagitário
comum sol alaranjado ao fundo
e ele
olhos pra mim, maroto,
como nunca o tinha visto,
brincando perguntou?
_ Que que foi menino?
e saiu de novo a galope de cinema,
me deixando embasbacado
diante do homem que morava comigo
e eu ainda não conhecia.
Marrom era a cor da terra,
onde eu pisava,
marrom era a cor do cavalo que corria,
marrom era a cor
daquele homem
gigante com grito de urso.
grito esse que herdei,
e que deixarei para meu filho
quando esse um dia aportar.
Acho que foi nesse dia,
no dia da maior visão
que as coisas que eu
simplesmente acreditava
começaram ter um outro sentido
a semente virá galho,
tronco,
flor
e semente de novo
o Pai vira Filho,
o Filho vira Pai,
o corpo continua no sangue
e no pão que foi ensinado a ganhar
no peixe que foi ensinado a pescar
a maior visão do mundo
pra mim
foi marrom e laranja
e reverberou em SOL
em FESTA, PASSARINHOS
e CAMINHOS
só tenho que agradecer
e lembrar com alegria
o homem urso
cavalo
passarinho
que me ensinou que
é muito bonito trabalhar
te amo homem João

(para João Teixeira de Oliveira, meu pai).

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