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Opinião
20/03/2019 08h44

Dois irmãos e o Rio Verde 2

Por Henrique Selva Manara

Um Conto das Aguas
(Parte 2, continuação...)

João sentia um peso nas suas costas toda vez que retornava do trabalho. Era como se sua coluna se desencaixasse, como se nadasse contra uma correnteza e nunca conseguisse sem afastar da margem do rio. Seu sonho era de estrada, mar e livros. Sempre que podia juntava um dinheiro e levava Berenice para conhecer uma nova cidade. A morte prematura de seus pais fez com que João deixasse seu desejo de ser escritor numa gaveta para outro momento. E essa gaveta ficara entreaberta, como se com o tempo fosse esquecida. Era preciso ganhar a vida, a sua e de sua irmã caçula. Não tinham tios ou avós que pudessem lhe dar um cais. Mas isso já fazia 15 anos. No quando da inesperada despedida, Berenice já fazia seus 7 anos, e agora alcançara os 22. João, 30. Para conseguir pagar todas as contas ele procurara o primeiro concurso público que lhe prometia uma segurança no dia a dia. Se tornou carteiro. Eram subidas e descidas, fizesse chuva, fizesse sol, João seguia seu itinerário sem faltar um dia sequer. Sua vida passara a ser um ir e vir para levar as mensagens do povo. Mensagens, contas e encomendas. De vez em quando uma criança lhe perguntava: “_ Tem carta pra rua Jaime Souto Maior, seu João?”. Ele com calma e alegre olhava sua lista pra ver se era o portador de alguma felicidade alheia. A vida seguia em bom sustento, trabalhava 44 horas semanais e conhecia muita gente interessante, ou melhor, era conhecido de muita gente. Todos na cidade conheciam o João Poeta. Era conhecido assim, porque sempre aos fins do dia, depois de bater seu ponto, João seguia para a beirada do Rio Verde perto da rodoviária e ficava lá conversando com o rio. Tecia versos para os peixes e flores brejeiras. Berenice chegava da escola com seus coleguinhas e ficavam todos ouvindo as histórias do irmão. O coelho que se escondia no anel. O caramujo que queria ser flor. O padre que colhia cogumelos azuis. A cada fim de tarde João contava uma nova história, uma nova rede de acontecimentos passava na mente das crianças assim como o rio que lhes servia de cenário. O Rio Verde era a tela onde João pintava cada personagem, o livro que se escrevia a cada corrente e que se apagava a cada segundo, porque suas histórias eram efêmeras, nunca eram contadas uma segunda vez. Berenice se magoava com aquilo, pedia que João as escrevesse, queria ouvi-las novamente e que mais pessoas pudessem conhecê-las. Mas João não admitia. Dizia que escritor era sonho, e que o que ele fazia era a vida real, fazia historinhas, brincadeiras para o entardecer, histórias que como o dia a dia nunca se repetem. No fundo João escondia uma vontade imensa de se deixar levar pelas palavras. De em vez de carregar textos por longas distâncias ser carregado por suas próprias palavras, chegando a lugares onde nunca havia imaginado, lugares onde poderia conhecer novos caminhos, novas cores, novos sons. Mas temia. Tinha medo de não conseguir pagar suas contas, tinha medo que Berenice passasse por faltas. Por isso no início do mês, pegava seu salário e a levava a um novo lugar, uma pequena cidade, parque, praça ou cachoeira. Para dar conta do que não conseguia resolver tomava uma cachacinha pra esquentar as ideias. Não é tudo que se fala para os amigos, não é tudo que se fala para os irmãos, assim pensava João. Com o passar dos anos a ausência de si mesmo passou a pesar em sua coluna. Não lhe era mais suficiente uma pequena dose, era preciso cada vez mais, e mais. E cada vez mais tempo gastava ao lado do rio, contando histórias que falavam de gritos e silêncios. A histórias de ontem não se repetiam, cada palavra nova que surgia vinha com um amargo gosto de um doce que não se comeu no devido tempo. João olhava Berenice e pensava, “_ Nos temos assim, um ao outro, aqui e agora.” Mas Berenice já crescera há muito, e tinha seus próprios caminhos. Lhe pesava perceber o descuido de João para consigo mesmo. Era preciso a imprecisão do viver. João deveria largar as margens e se deixar levar pelo rio de si mesmo, era preciso plantar suas palavras no tempo, vencendo o efêmero correr do rio.
(continua...)

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