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Opinião
27/03/2019 08h58

Dois irmãos e o Rio Verde 3

Por Henrique Selva Manara

Um conto das águas
(Parte 3, continuação...)

...“Não ponha em mim a culpa do seu segredo”. Assim terminava a carta de despedida de Berenice. Cansada do efêmero respiro solar de seu irmão ela o via como quem via o Rio Verde. A cada fim de tarde, dele jorrava uma nova história, cheia de mistérios e profundos redemoinhos, e na superfície sempre o mesmo João, que não saia do seu luar, satélite de sua própria ilha interior. Berenice escrevera uma mensagem entre as laudas de um caderno de canções que sabia que em algum momento João iria encontrar. “...você é novo, e o caminho há de ser belo, largue as margens meu querido irmão, só te verei novamente quando seus livros me alcançarem antes ou não o verei mais.” E assim destilou uma cruel despedida sem olhar para trás. Berenice ainda hesitou ao fazer as malas. Pensou em todos os passeios juntos do irmão, de como era bom cada vez que conheciam um lugar novo, das fotos que tiravam, era ela quem mandava imprimir o passado. João vivia o presente, assim como suas histórias, era preso numa pretensa liberdade de viver o agora. Mas assim não era Berenice, ela sonhava em plantar suas próprias sementes, queria ser professora, sair de São Lourenço, viajar para estados, países, aprender outras línguas, aprender e ensinar, ler, ler, ler, e quem sabe um dia ler o irmão. Olhou mais uma última vez o quarto que por tantos anos elaborou esse momento. Muitas vezes falara ao irmão sobre o que queria que ele fosse, o que sonhava para ele vendo todo seu potencial, até que um dia caiu a ficha. “Num copo d’água só cabe um copo d’água. O João é o João, quem parte sou eu.” E assim o fez, deixou aquele caderninho de cifras do Caetano na mesa do café, ao alcance dos olhos de João, como uma certeza de que assim ele entenderia aquela partitura. Ao sair era uma manhã escura, um céu denso e nublado tomava conta da entrada da cidade. Berenice atravessou a ponte em passos largos indo até a rodoviária, comprou uma passagem para um lugar não revelado para nós. Ela queria um novo começo, temia que se nós lêssemos seu destino pudéssemos lhe desviar de sua imprecisa rota, diz o tido popular que não devemos revelar nossos sonhos antes de realizá-los. Nos contentemos em saber que ela não se afogara. Dado que não dividiremos com João, pois ainda não quebramos a parede que separa o leitor do personagem. Ou melhor seria dizer a janela? Janela transparente que nos projeta o real e o fictício, a metafísica e o documento, a memória e a poesia, mas isso é assunto para outro texto, outro reino de devaneios. Na manhã de Berenice, naquela manhã escura, relâmpagos clareavam o anel rodoviário. Berenice, com medo de olhar para trás, fechou a cortina de sua janela e não viu a tempestade que se apressava vindo de Pouso Alto. Partiu para frente, para os caminhos de lá. João devia estar pelo centro quando as sirenes dos bombeiros começaram a soar. Uma tromba d’água explodira em Passa Quatro na madrugada e descia a toda velocidade. Como a maioria das pessoas dormia, poucos souberam da catástrofe antes que as águas alcançassem a vida de São Lourenço. O Rio Verde, que parecia tão calmo nos fins de tarde, mais uma vez mostrara toda sua força e revolta escondida. Fosse por acaso ou fosse porque lhe roubaram seus cílios, o fato é que todas as vezes que o céu não se cabia em si, desabava pela Serra da Mantiqueira devorando as margens da estrada d’água e tudo que ali estivesse plantado, guardado, vivendo ou esperando viver. João correu até sua casa, pensando em Berenice. Moravam ao lado do rio, perto do início e fim da cidade. “Será que ela conseguira sair?” Quando alcançou a ponte pode ver sua casa submersa, já pela metade. Nadou até a porta e teve que quebrar a janela com um pedaço de tronco que vinha da correnteza. Na sala boiavam garrafas de cachaça, fotos das suas viagens com Berenice, jornais de ontem, e uma pequena revista de canções de Caetano Veloso, tudo já manchado, com a tinta escorrida derretida pela água. João gritava _ “Berê ?! Berê, você esta aqui?” Andou por todos os cômodos com a água já no peito, mergulhou a cabeça, procurou em baixo da mesa, das camas, nada. Um certo alívio lhe confortou. Do lado de fora a defesa civil num bote gritava por João. A água descia rápido e João teve que nadar para conseguir sair pelo mesmo buraco que quebrara na janela. Do lado de fora bombeiros aguardavam o João Poeta. “_ Berenice, alguém viu a Berenice? Era pra ela estar dormindo.” Nada. Poucos haviam acordado cedo naquele dia, os que assim fizeram, tinham seguido seus itinerários sem encontrar com a irmã. Do outro lado do rio, que agora era quatro vezes maior em largura e altura, ficava a rodoviária. Os sinais de celular não pegavam. 18 horas, toca a Ave Maria no alto da igreja da Vila Nova, uma das poucas a não ser atingida, na parte baixa da cidade o rio ainda passava cheio e caudaloso. Por volta das 16 horas do dia seguinte a água começa a baixar revelando lama e caos sobre os pés da cidade. Muitos foram os atingidos e desaparecidos. João não conseguiu dormir, mesmo dopado de calmantes. Queria notícias de Berenice. Nada. Naquela tarde não haveria história. Só um silêncio imenso, ensurdecedor, como se cada um naquele alojamento improvisado na escola Mário Junqueira Ferraz fosse perdendo seu contorno, sua identidade, sua referência. O que será de amanhã? Pra onde voltaremos? E elas? E eles? Onde estão? Chega a noite. Fabrício, um velho amigo de João, consegue convencer o amigo a dar uma caminhada para anestesiar aquela dor. Sobem até a casa de Branca, que os recebe com um chá para bons sonhos. No atelier de Branca, casinhas feitas de papel machê, lembram a história da bela instância hidromineral. O Mirante com as fogueiras e rodas de violão, as pombas do Divino Espírito Santo, as rodas de chorinho na Casa de Pedra, as crianças soltando pipa em baixo do “arvrão” na Montanha Sagrada... as miniaturas contavam a história de tempos que tinham se passado. Fabricio perguntou, “_Branquinha, esse aqui sou eu?”. “_Sim, é você Fabrício, tocando violão no Mirante.” João pensou, estão todos ali, de alguma forma estranha ainda estão todos ali. Naquela noite João sonhou.
(continua...)

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