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Opinião
03/04/2019 10h00

Dois irmãos e o Rio Verde 4

Por Henrique Selva Manara

Um conto das águas
(Parte 4, continuação e final)

Era uma ponte, uma ponte entre um rio verde escuro e um céu azul infinito. João se encontrava no meio da ponte. Não podia voltar e temia seguir, estava paralisado, sem conseguir olhar para trás ou dar um passo adiante. Embaixo da ponte passava o rio, mas a ponte não servia para ligar as duas margens desse rio, não, a ponte estava exatamente em cima do curso do rio, uma travessia longa onde não se podia mirar o início e muito menos o fim daquelas duas linhas paralelas. Rio e ponte, ponte e rio, apesar de separadas seguiam uma rota só. João olhava para esse horizonte sem fim, buscava algo para se apoiar, a resposta para a pergunta que ainda não sabia fazer. Seus cabelos foram se tornando grisalhos, e suas têmporas se afinando, quase fechando seus olhos. Usava um terno negro sem camisa por baixo e olhava pra frente mesmo sem ver o fim. Aos poucos uma garoa fina começou a tomar a atmosfera do lugar, engrossando ela caia mais forte, encharcando João da cabeça aos pés. No fim do horizonte percebeu-se um vulto que se aproximava. A imagem pequena de um homem que andava em sua direção foi crescendo e tomando foco, forma, até que se tornou reconhecível. João olhou para o homem que o encarava e era ele mesmo, um outro João que era ele mesmo, só que mais novo, na sua verdadeira idade, mas ele mesmo, o João observador, era um velho de cabelos brancos, parado naquela ponte. Os dois que são um só se olhavam, João mais novo sorriu e estendeu a mão, João mais velho em resposta a apertou a mão com firmeza. A chuva se tornou uma tempestade enchendo o rio que transbordou sobre a ponte, subindo a altura de seus joelhos, quadris, peito, cabeça, encobrindo ambos, João velho, João jovem, João jovem, João velho. Não existia lugar para se segurarem a não ser neles mesmos, não existiam margens e a ponte estava submersa, a única sustentação que João tinha era o outro João, ele mesmo para si mesmo, homem e ancião, ancião e homem. O dois que são um só foram afundando naquele rio que foi se tornando um verde escuro, quase sem luz, só silêncio, um silêncio ensurdecedor. É impossível nadar com as mãos agarradas em si mesmos, perceberam. O peso do outro que é você mas ainda sim é outro não lhe permite a leveza para se deixar levar. O velho João, observador até então percebeu, “ainda não é meu tempo”. A mão do velho João se abriu, escapou do jovem João, e aquele que observava passou o sentido que mira para o mais novo, como um respiro primaveril que diz “_ continue por mim”. João adulto, nadou sem saber que podia nadar, bateu pernas e braços num ritmo contínuo, constante, calmo como nunca fora antes. O silêncio do fundo do rio o trouxe tranquilidade, o abraçou completamente, o silêncio é agua e esquecimento. João nadou entre carpas douradas e lambaris, seus braços engrossavam a cada remada e sua pele ganhava uma textura escamosa, abaixo de suas orelhas nasceram duas guelras e seu olhos viraram duas esferas reluzentes procurando a superfície. Uma luz dourada o chamou para o lado de fora do rio, um grande bola dourada brilhou atravessando o verde do rio, João nadou até lá em puro silêncio e cortou a linha que separava o contorno do que esta dentro e o que esta fora. Seu peito queimou ao ser invadido novamente pelo oxigênio da superfície, a luz do sol se abriu num fadeout branco, estourado, João acordou. Ao acordar vê ao seu lado as miniaturas de Branca, vários elementos que lhe despertam para onde está e quando está. Se levanta, a amiga está esperando com um café da manhã que só se tem em Minas. Bolo de fubá, pães de queijo, geleia de amora. Branca sempre soube cuidar dos amigos, era enfermeira, cozinheira e artista plástica, uma combinação que só as mulheres eram capazes de englobar com tanta maestria. Sabia qual o momento de acolher quem estava precisando e também o momento de deixar que a pessoa seguisse seus próprios passos. Esse era o momento de João. Após o café reforçado e uns dedos de prosa com Branca, João desceu para sua casa, pra ver o que sobrara dela. Chegando lá era evidente a força das águas em seu destino. Seu quarto era pura lama, todos os móveis revirados, a sala não tinha mais parede ou porta de entrada, havia cedido à correnteza. Nenhum sinal de Berenice a não ser as pequenas fotos, todas manchadas pela tinta que se derreteu na água, como uma memória que se perde com o tempo, nenhuma notícia, somente lembranças que se confundiam com as histórias inventadas no dia a dia. João olhou aquilo tudo, não havia mais sentido, não havia Berenice, não havia ponte, não havia fotos, só havia a miniatura de Boi Bumbá que Branca lhe dera ao sair de casa. “_Na história o Boi alcança estrelas meu amigo. Se firma nele que ele vai te ajudar a reencontrar o que precisa.” Olhou para a garrafa de cachaça que estava suja de lama caída no chão, pensou em beber, mas não teve vontade. A tarde passou demorada, cheia de vácuos e nostalgias. Quando o céu passou a se tornar alaranjado, João que estava deitado no seu chão de lama, ouviu uma voz fina lhe chamar. Era um garoto de uns 7 anos e sua irmã de 4, vinham todas as tardes para ouvir as histórias do João Poeta. “_ Seu “Jão”, já tá acabando o dia, hoje tem história?” A água da enchente já havia abaixado há dias e fora a primeira vez que João retornara a sua casa, porque sabia que não iria encontrar mais Berenice, não iria encontrar o seu lar. A pequena garota de vestido amarelo olhava com olhos arregalados o João Poeta, enquanto lhe saia um pouco de ranho no nariz sujo de poeira. No seu peito sentiu a pequena miniatura do boi lhe coçar a pele. De um lado o Rio Verde passava, já calmo e fechado como sempre, sem revelar sua profundidade, mas cheio de vidas, fúrias e segredos sob a superfície. Do outro lado as crianças, convidando João a contar seus devaneios. “Em um copo d’água só cabe um copo d’água”, pensou. “As pessoas me pedem histórias, as histórias me pedem pessoas. São brinquedos de papel machê. Passam como rio e continuam lá como o rio.” Pensou em Berenice, de alguma forma ela estava lá, naquelas crianças, naquele rio, naquele Boi Bumbá em seu peito. E pela primeira vez contou uma história que já havia contado, uma história que não era inédita, que era dele, de todos que quisessem ouvi-la, contou para que não se perdesse mais a vida pela força da lama, pela força do rio, pela força das despedidas. Lembrou do silêncio do sonho, olhou nos olhos para aquele casalzinho e começou. ““_Certa vez, pequenas pedras miúdas se acumularam sob o sol em uma roda de conversa, discutiam entre si sobre quem eram elas. Seriam as lágrimas de um amanhecer distante, o primeiro amanhecer do mundo, assim disse a Pedra Rosa. Seriam as pontas dos cabelos cortados das estrelas, assim disse a Pedra Azul. Seria a urina ressecada de um grande mamute, assim jurou a Pedra Amarela.”

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