Parte 4 e final: O POVOTUDOISSOAÍ
Para além dos limites do meu bem
meu barco quer navegar,
para antes do princípio do mau
ele quer se encerrar,
quer se fundir com as ondas
que seu casco corta,
quer ser um só com o mar.
“-Sim, sou daqui e de agora. Sou minha e de mais ninguém”, assim respondeu Ariadne aos olhos do menino que lhe chamava ao mundo. A criança meio sorrindo responde, “_ A Valentina disse que nós somos do amanhã.” Ao ouvir Benjamim a sua frente uma dúvida ecoou. “_Sou? Aqui? Agora? tantos tempos...” A criança, sem se abalar, senta ao lado de Ariadne, encosta a cabeça em seu braço enquanto olha os passageiros descerem de seus ônibus. Centenas de foliões aportam naquela manhã, são cores diversas, malas carregadas de doces, vinhos, pingas e catuçaí. “_Eles são o Povotudoissoaí, dona.” “_Hã, como assim?” Constrangida com aporte do pequeno homem, Ariadne se prostra a curiosidade daquele encontro. “_ O Povotudossiaí, uai, o rei quer acabar com eles, acabar com o Povotudoissoaí, tá ok? Passou um omi lá na pracinha e gritou com a gente. “Saíam daqui pivetes. Agora o rei vai acabar com tudoissoaí”. A Valentina me disse que eram essas pessoas que vivem aqui com a gente, o Povotuuuuuuuudoissoaí.” “Quem é Valetina?”
No meio da multidão brilhante Dionísio parou seu tambor, foi ao encontro dela, a menina que pedia por alguém. Emoldurados por glitters, seus olhos estavam assustados, procuravam por alguém no chão. “_ Benja, Benjamim.” “_Calma, querida, agora eu vou te ajudar. Quem você esta procurando, quem é Benjamim?” A correnteza de pessoas continuava a correr na contramão, todos queriam a queda do rei, suas vozes eram uníssonas, “_ Ai, aiaiai, aiaiaiaiai...” Embaixo da grande árvore, Dionísio e Valentina observavam o rio de gente, um estrondoso vulcão que explodira em lavas de paixões prometidas. Tudo havia começado muito antes, a mais de 500 anos. Filhos de Macunaíma e Ci, o Povotudoissoaí lutava há 500 anos contra o rei Piaimã, um monstro que vinha do mar devorar almas e pedras preciosas. “_Benjamim é meu irmão, ele sumiu, a gente ia ver as pessoas que chegam, sempre procuramos alguém que saiba de nós”. “_As pessoas que chegam?” “_Sim, na rodoviária, é a nossa brincadeira, mas a mão dele escapou e eu não sei nadar”.
“-Valentina é a minha cama, meu abraço, minha amiga, minha irmã. Ela sumiu. A gente ia ver as pessoas que chegam, sempre procuramos alguém que saiba de nós, mas a mão dela escapou e eu não sei nadar.” Ariadne, olha para o menino como se já o conhecesse, como se tudo aquilo já tivesse sido dito por outra pessoa, outra vida, outro rosto. Uma sirene toca ensurdecedora, bombeiros correm avisando a todos. “_Corram, corram, subam a colina, mais uma barragem estourou.” Ariadne, pega Benjamim. “_Segura a minha mão e não solta, eu sei nadar.”
Perto da praça onde os invisíveis se mostram aos olhos, a multidão se aproxima do coração do antigamente, seu grito é de fúria, seus mortos não serão esquecidos. Uma sirene que até então não havia sido ouvida toca como um uivo bíblico. “_ Fujam, fujam, subam para a primeira colina, outra barragem estourou.” Valentina treme “_Não sei nadar.” Dionísio protetor “_Segura a minha mão esquerda e não solta.” Com sua mão direita começa batucar um ritmo de uma canção antiga, uma canção de antes do início do mal. A multidão caótica, corre para lados perdidos, o clima de medo assalta os foliões. Dionísio com uma mão segura firme Valentina e com a outra conduz as batidas em seu tambor iniciando seu hino antigo. “Evoé, laroiê, ocupa os pés aqui nesse chão, vamos todos meus irmãos, ninguém solta à mão de ninguém. Evoé, laroiê, ocupa os pés aqui nesse chão, vamos todos meus irmãos, ninguém solta à mão de ninguém”. Os outros batuqueiros ouvem o chamado e se reúnem perto de Dionísio, criando um grande coro, ecoando num imenso jogral. “Evoé, laroiê, ocupa os pés aqui nesse chão, vamos todos meus irmãos, ninguém solta à mão de ninguém”.
Na rodoviária, pessoas apavoradas correm em direção à colina, Ariadne perdida, só tem um foco, não soltar a mão de Benjamim. Ela corre com ele no seu colo, grandes pinturas revelam o sentimento de urgência pelas paredes dos prédios. O povo pede por cura. Levados pelo fluxo da fuga eles chegam até uma praça, ouvem sons, uma manada de búfalos, não são búfalos, são tambores, os sons vem de tambores. Mulheres nuas dançam como se em corpos orassem, um canto ecoa “Evoé, laroiê, ocupa os pés aqui nesse chão, vamos todos meus irmãos, ninguém solta à mão de ninguém.” Benjamim vê Valentina segurando a mão de um homem pintado de verde, todo coberto de alecrim. Pula e corre até ela, Ariadne o segue. Valentina vê o irmão e corre até ele, Dionísio vê o abraço dos irmãos e a mulher que se aproxima para levantá-los e protegê-los da grande onda. Quando Ariadne corre, uma de suas sacolas de sementes caí, e fecunda a terra. A semente de um Baobá, a árvore mais antiga do mundo. Diante dos olhos de todos um milagre acontece, um caule emerge da terra cintilando três folhas verdes. A cada batida de um tambor cresce mais uma folha e um novo galho, a árvore é imensa, cobrindo quase toda a multidão. Ariadne fala à multidão “-Ganhei essas sementes das velhas curandeiras, tenho mais, precisamos plantar, corram, plantem, antes que a grande onda do gigante Piaimã chegue até nós.” E enquanto os tambores tocam e cada voz ecoa uma mesma canção, mulheres e homens juntos plantam novas sementes de baobá, cercando toda a cidade, resistindo ao monstro estrangeiro que veio para usurpar o Povotudoissoaí. A cidade é protegida por uma grande fortaleza verde, cercada por um espirito ancestral que acolhe e alimenta os corações generosos. Dionísio e Ariadne abraçam Valentina e Benjamim, aqueles que andavam sós, agora têm mãos fortes para se segurar. Juntos sabem nadar e enfrentam todos os mares agitados. Tocando seus tambores e plantando sementes, plantando sementes e tocando seus tambores, olhando para o chão e para a colina, embaixo dos baobas. Juntos venceram o monstro Piaimã. Evoé é o canto do Povotudoissoaí.
Fim.