Quem pensa que as bolinhas de gude só serviam para os jogos nas calçadas ainda de tijolo e terra, onde era fácil serem feitas as “crojas” ou para serem jogadas e disputadas no “ marrai a vera ou a brinca” nos recreios das escolas de, engana-se.
Quem pensa que todos os que tinham pés chatos, levantavam as mãos para o céu, pois seria uma chance a mais de escaparem do Serviço Militar, também.
Quem pensa que não existiu nunca um pai capaz de preocupar-se tanto com a saúde dos filhos a ponto de não admitir nem que eles tivessem pés chatos, errou.
E quem pensa que os irmãos maristas eram todos revestidos de um supremo senso de justiça, está, outra vez, pensando de uma maneira errada.
O fato a que vou reportar-me, comprova tudo o que estou dizendo.
No princípio de minha adolescência, ao verificar que os meus pés eram chatos, papai preocupou-se imensamente e quis saber qual era a maneira de corrigir aquilo. Como já disse, os itens saúde e educação sempre foram mais importantes do que outros, no seu pensar que, aliás, estava certo.
Consultado um médico, fomos inteirados de que existia um tipo de ginástica que podia ser feito, no intuito de corrigir aquele defeito ortopédico. Consistia em segurar-se uma bolinha de gude, colocada na sola do pé, com o dedão e o segundo dedo fechados. Quanto mais tempo conseguíssemos segurar a bolinha seria melhor para nossos pés.
No colégio interno, mesmo não existindo ainda o termo “ pagar mico”, eu não queria pagá-lo. A hora que achei melhor, para fazer o estranho exercício sem que ninguém visse o que estava fazendo, foi de noite, no dormitório. É, claro, depois que as luzes fossem apagadas.
Luz apagada, imediatamente as bolinhas eram tiradas da gaveta de meu camiseiro e seguradas com os dedos dos dois pés. O Filipe adolescente de 13 anos estava cumprindo sua missão e seu dever. Tal qual o pai o fizera prometer.
Houve uma noite em que aconteceu o inevitável: uma das bolinhas escapuliu de meu pé. O piso do enorme dormitório, além de ser de tábua corrida velha, tinha uma inclinação. Eu dormia num dos cantos mais altos. Então, a maldita da bolinha resolve rolar. Seu ruído ecoou alto até a outra ponta do cômodo onde dormiam cinqüenta ou mais alunos. Era nesta ponta que dormia o Irmão regente, num quartinho separado.
Imediatamente, fugindo ao habitual, ele levantou-se, acendeu todas as luzes e perguntou:
_Quem foi o autor desta brincadeira?
_O autor disto fui eu, Irmão Tomás, só que não foi uma brincadeira.
Foram em vão todas as explicações que tentei dar. Ele não admitia que eu estivesse falando a verdade. Aluno, interno, adolescente, só podia estar mentindo. Se os pais o mandaram para o colégio interno é porque devia ser um mentiroso que nem eles agüentavam.
Naquela noite, devido ao senso de justiça do religioso, tive que ficar durante três horas, de pé, no escuro, virado para a parede. Ainda pior: sob risos dos outros alunos. Como se tivesse tido culpa de alguma coisa.
Pobre de quem em sua adolescência, distante de casa, tem a oportunidade de conviver com pessoas desta espécie.
Pé chato, ao que parece, tinha remédio, mas irmão chato e injusto, teria alguma bolinha capaz de fazê-lo mudar ? Quem sabe se ele fizesse uso de alguma delas, fizesse uma “viagem” onde se tornasse uma outra pessoa? Aliás, até hoje estou tentando descobrir quem seria mais chato, o pobre do meu pé ou o injusto juiz de um adolescente interno.