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Opinião
10/04/2019 09h42

O PALHAÇO, UMA NARRATIVA CIRCO/LAR

Por Henrique Selva Manara

#osfilmesqueeuqueriaquevocêassistisse

Neste restante mês de abril dedicarei nossos textos de quarta-feira à arte da comédia, tema tão precioso tanto para a reflexão dos nossos sentimentos sobre a vida e as relações humanas, como para a construção crítica sobre a funcionalidade da sociedade e suas hierarquias. Para começar, escolhi falar do filme O PALHAÇO, dirigido e estrelado pelo ator Selton Mello, que apesar de ter participado de “Mecanismos” duvidosos em trabalhos recentes, vem ao longo de sua carreira criando trilhando uma jornada de amor e entrega às artes do cinema e da comédia.

Uma estrada de terra, cortadores de cana, três carros que vem de longe carregados de madeiras, lonas, ferros, móveis e pessoas. Uma “Mulher Camponesa” para seu trabalho para observar a mudança que passa por seu caminho. Assim começa O Palhaço (2011), filme dirigido e interpretado por Selton Mello e co-escrito junto a Marcelo Vindicato, que apostando em modos de uma narrativa clássica cinematográfica desenvolvem um roteiro cativante permeado de presentes ao espectador atento à referências cinéfilas e aos jogos de estruturas dramatúrgicas. Quando pensamos sobre o filme O Palhaço, é importante se lembrar que antes de ser diretor e roteirista, Selton Mello vem de uma longa carreira de ator. Aos 7 anos Selton Mello iniciou sua carreira no mundo audiovisual através da novela “Dona Santa” (1979), de daí para frente não parou. Foram cerca de 25 trabalhos entre novelas e séries para televisão, 32 filmes como ator, e 4 como diretor, sendo um curta-metragem; “Quando o tempo cair” (2005), e 3 longas; “Feliz Natal” (2008), “O Palhaço” (2011) e “O filme da minha vida” (2017). Sua carreira cinematográfica se provou proativa. Além das atuações atorais Selton assumiu funções ao longo dos anos como diretor, dublador, roteirista e produtor. Podemos perceber por meio de seus trabalhos uma paixão pela sétima arte. Em seus três longas, Mello procura revisitar a história do cinema. Ora por meio de enredos que homenageiam clássicos como em seu terceiro longa, O filme da minha vida trazendo referências a “Cinema Paradiso”, (TORNATORE, 1988), ora resgatando artistas que haviam caído no ostracismo como em Feliz Natal estrelado por Darlene Glória atriz de “Toda nudez será castigada” (JABOR, 1972). É importante que entendamos o contexto desse personagem da vida fora das câmeras, Selton Mello, para o caminho que iremos trilhar através de O Palhaço.

Voltando ao filme, primeiro vemos uma estrada, um caminho, uma rota. Nesta, pessoas do campo trabalham anônimas, vendo o circo passar por suas vidas. Herdeiro das trupes de saltimbancos como os da antiga “Commedia dell’ arte”, o circo ao mesmo tempo que é uma arte itinerante, que vai até as pessoas, é também um lar para seus artistas, muitas vezes sendo um negócio de família, que passa de pai para filho, como é o caso do personagem protagonista “Benjamim”, interpretado por Mello. Benjamim é o palhaço “Pangaré”, herdeiro do “Circo Esperança”, liderado por seu pai, “Valdemar”, (Paulo José) o palhaço “Puro Sangue”. Cada um desses nomes escolhidos já vem carregado de significado que convidará o espectador a criar suas próprias conexões e leituras dentro de seu repertório pessoal e do imaginário popular, construindo uma simpatia com aqueles personagens e cenários. O Puro Sangue legítimo, o Pangaré mestiço, o “Circo/círculo Esperança”; cada um desses personagens ao longo do roteiro revelará características próprias de seu nome.

A apresentação do personagem principal vem através de seu antagonista, a “Falta”, representada na fala de uma “Mulher” que lhe diz ao pé do ouvido como uma tentação: “_ Você devia ter um Ventilador.” Ventilador: dispositivo mecânico de forma circular utilizado para a circulação do ar. Aqui esse Ventilador será a primeira peripécia, o dispositivo que iniciará toda a mecânica do roteiro. A partir dessa fala se inicia um “desenrolar” de eventos que levarão o personagem Benjamim à busca de sua própria identidade. Tanto o Ventilador quanto a Mulher serão ícones perseguidos pelo personagem em toda sua jornada à procura de sua completude. A imagem que constrói essa sequencia é a da Mulher que lhe desperta para o sentimento de Falta seguida da imagem de Benjamim se maquiando em frente ao Espelho do camarim. O Espelho aparecerá em pelo menos três momentos decisivos no filme. Ainda sem o saber, apesar de estar se maquiando, se transfigurando num personagem, é nesse primeiro momento que Benjamim aparece o mais desmascarado para si mesmo, encarando talvez pela primeira vez a consciência de sua derrota existencial. Não tem certeza se é mesmo um palhaço, se aguenta resolver todos os problemas daquela família. A cena nos parece uma clara alusão à “Luzes da Ribalta”, de Charles Chaplin (1952), mas num jogo inverso de valores e ações que só se completarão ao desenvolver da jornada de Benjamim. No filme de Chaplin, a cena do espelho, uma das finais, o velho palhaço Calvero que impediu a dançarina Terry de cometer o suicídio é questionado pela mesma diante do espelho: “_ será que vale a pena ?” ele voltar aos palcos, no que ele responde olhando seu próprio reflexo: “_Há uma luz piscando dentro de mim. E isso me preocupa essa noite. Não me importa o sucesso, mas não quero fracassar de novo. Essa é minha casa”, diz batendo os dedos na mesa do camarim, no que Terry comenta: “_Pensei que você detestava o teatro”, seguindo de sua resposta, “_Sim, tanto quanto o sangue, mas está em minhas veias”. A referência advindas dessa fala aparecerá ao longo do filme, no conflito de Benjamim com sua profissão que também é o seu lar e sua família. Na próxima cena vemos um plano de sequência que nos lembra muito o modo como Fellini apresentava suas personagens nos inícios de seus filmes. Como em E La nave Va (1983) ou Amarcord (1973), a câmera segue Benjamim caminhando numa trilha feita de tábuas de madeira enquanto apresenta todos os personagens do circo. A rota que Benjamim segue nesse caminho de madeira se repetirá ao longo do filme, ao mesmo tempo que cria uma gag, também é um artifício que nos contextualiza de sua rotina. É nesse percurso que Benjamim recebe as informações sobre a cidades, informações que se transformarão em piadas no picadeiro, e nele também que toma conhecimento sobre os problemas de seus companheiros, conhecimento que se tornarão seu drama fora do picadeiro. A “Mulher-gorda” que precisa de um sutiã, o “Homem-mais-forte” que precisa de um tênis novo e o casal que quer pintar o cabelo. A cena nos lembra o personagem Guido de 8 e ½ de Fellini (1963), fugindo de seus atores no estúdio sempre lhe trazendo novos problemas ou novas propostas para seus personagens. Por que Senton Mello escolhe contar uma história de um Palhaço que esta a procura de sua identidade? Benjamim esta em busca de um Ventilador, símbolo de uma renovação de ares, mas este é muito caro. Ao perguntar para o lojista se poderia parcelar, descobre que para isso precisa de identidade e comprovante de endereço. Sua única identidade é uma certidão de nascimento velha e amassada e seu endereço é a estrada, cada hora em uma paragem diferente. A presença da ausência de sua identidade é o elemento que justifica todo o desenvolvimento da trama. A escolha de um “Palhaço” como personagem é carregada de sentidos contidos no imaginário popular e também no particular imaginário universo das artes da cena. Para muitos grandes artistas a figura do palhaço representa o perdedor que nunca desiste. Carlitos de Charles Chaplin, Didi Mocó de Renato Aragão, Gesolmina de La strada (FELLINI, 1954) interpretado por Giulietta Masina, são exemplos da criança interna que continua seu caminho sonhando com algo que para a maioria das outras pessoas é impossível ou fora da regra. Fellini, por exemplo, foi um dos cineasta que mais reverenciou a figura do palhaço em seu cinema. “O palhaço nos apresenta um mundo e um modo de experienciar o mundo que anuncia-se como diferença em relação ao modo dominante ou cotidiano da experiência.” (FELLINI, apud ABREU, 2015 p.44).

Se nos atentarmos ao fato de Selton Mello ser um ator, além de o próprio roteirista e diretor do filme, podemos elencar essa escolha como uma motivação artística que lhe permite de forma subjetiva se olhar no espelho ao se ver como Benjamim na grande tela. Como o próprio Benjamim, que procura sua identidade em toda sua jornada e em três momentos se encara no espelho se perguntando sobre qual o caminho seguir, Mello parece experimentar no seu roteiro uma busca no baú das memórias para contar sobre o prazer de ser um artistas do palco. Procura através de “Benjamim” um resgate à sua paixão pelo cinema, pela comédia. No percurso de Benjamim, percurso que se opõe ao sonho popular de fugir com o circo, para ao contrário, fugir do circo, vários símbolos autobiográficos são eleitos pelo diretor roteirista, a começar por sua cidade natal, Passos, no sul de Minas. Ao decidir abandonar a vida do circo, Benjamim parte em busca de seu Ventilador e também de um “possível” amor, “Ana”, uma moça da plateia que ele só conversou uma única vez. Passos é a cidade onde Selton Mello nasceu, e é lá que o personagem Benjamim, portando somente sua “certidão nascimento” amassada conquistará sua “identidade” que supostamente lhe dará autonomia e crédito perante a sociedade. Nesse interim, Benjamim se encontra com novas figuras, sempre a fazer piadas de sua situação, não por maldade, mas por serem figuras popularescas, que não vivem o mesmo drama do palhaço. A primeira destas figuras é o delegado que antecede cena da saída de Benjamim do circo. Interpretado por Moacyr Franco, ator cômico que trabalha há décadas na televisão brasileira, o delegado é uma figura grotesca, quase um bufão, um policial corrupto que ama mais seu gato que a própria esposa. No enquadramento escolhido pelo diretor, o delegado traz um ventilador de parede coroando seu status elevado aos olhos de Benjamim. Segue-se uma seleção de figuras ícones da televisão brasileira para quem nasceu antes de 1980, claras homenagens à esses atores cômicos, feitas pelo diretor, que lembremos, também é ator de televisão.

Destes ícones a segunda figura que aparece será o seu futuro chefe, o dono de uma loja de eletrodomésticos, que não por coincidência vende ventiladores. O ator que interpreta esse chefe é ninguém menos do que Jorge Loredo, ator cômico famoso por seu personagem global, Zé Bonitinho. Nesse primeiro encontro, ambos estão separados por um balcão, Benjamim ainda esta do lado de quem precisa adquirir um bem, enquanto seu chefe de terno e gravata é quem poderá lhe ajudar nessa conquista. A ponte que permite o diálogo é um buraco no formato de círculo numa janela de vidro, reforçando numa construção semiótica a ideia cíclica que o filme sugere a todo momento. No lado de fora do vidro a placa diz: “Precisa-se de atendente.” Benjamim conquista o emprego, atravessando para o outro lado da janela que o separa do homem de gravata. Agora ele também é um vendedor de ventiladores.

A cena que segue nos apresenta um terceiro palhaço de televisão, esse já no ostracismo, mas que como Selton Mello foi um astro infantil, o famoso Ferrugem. O ator Luiz Alves Pereira dos Santos foi o popular Ferrugem, no programa Essa Gente Inocente da extinta TV Tupi na década de 70, posteriormente trabalhando na TV Globo em programas como Balança mas não cai, e o Sítio do Pica-pau amarelo na década de 80. Luiz Alves, eternamente reconhecido como Ferrugem, interpreta um atendente de cartório piadista, que brinca de forma amigável com Benjamim quando este tenta retirar seu RG. Depois de muitas idas e vindas, que mais lembram gags cômicas, Benjamim consegue retirar sua identidade. É nesse momento que pela segunda vez Benjamim se olha no espelho. Vestido com camisa de botão e gravata, se transforma num novo personagem com endereço fixo e RG. Seguindo, mais um terceiro personagem que também vem carregado de um simbolismo transtextual muito importante para trama é o Aldo, da loja Aldo autopeças. Noivo de Ana, a paixão platônica de Benjamim, Aldo é interpretado pelo ator Danton Mello, irmão de Selton Mello. Aldo irá se casar com Ana na mesma semana que Benjamim a encontra. Não é por acaso que o personagem de Danton esta emoldurado por hélices que lembram um ventilador, Aldo é o vencedor que Benjamim nunca será. Continuando a estrutura circular desenvolvida em toda narrativa, após conquistar sua identidade reconhecida num documento, o RG, comprar seu ventilador e se frustrar diante da paixão não correspondida, Benjamim se olha no espelho pela terceira vez, como quem continua a se procurar. Olhando já desconfiado, atrapalha seu cabelo e brinca consigo mesmo, é o tempo de voltar. Seguem-se cenas que arremetem a memória do circo, do lar. Um homem da idade seu pai de costas lendo o jornal, o chefe fazendo piadas na mesa, os ventiladores agora já tão acessíveis e em abundância, tudo indica o caminho do retorno. Num lindo enquadramento a câmera mostra uma paisagem rural e aos poucos uma bicicleta entra no plano vinda num sentido anti-horário, da esquerda para a direita, como quem retorna pela porta que saiu aparece Benjamim na garupa da bicicleta carregando seu precioso Ventilador. Faz várias baldeações, bicicleta, ônibus e carroceria de caminhão. Nessa última encontra a Mulher Camponesa do início do filme, flertam, e seguem juntos para apresentação do circo. Fazendo uma surpresa para seu pai Puro Sangue, o palhaço Pangaré adentra o picadeiro e responde a filosófica pergunta; “O que estou fazendo aqui?”: “_O gato bebe leite, o rato come queijo, e eu sou palhaço”. O olhar apaixonado do pai se encontra com o do filho que retorna e ambos selam sua rendição num lírico beijo de nariz de palhaço. Lembrando que Selton Mello já havia interpretado o arquétipo do filho pródigo que procura seu caminhos fora do cercado do pai na tragédia Lavoura Arcaica (2001) de Luiz Fernando Carvalho. Só que agora esse filho retorna numa forma mais leve, branda, redentora. Seguem-se gags executadas com muito entusiasmo por ambos (diferente do início do filme), provocando o riso geral da plateia. E encerrando o espetáculo ambos dizem precisar de uma Mulher corajosa para “uma missão de extrema importância”. Mais uma vez a figura de uma mulher surge como uma figura a apontar caminhos, desta vez a Mulher corajosa é a criança (Larissa Manoela) que vive com eles no circo, a herdeira do Circo (lar) Esperança. O filme se encerra num lindo plano de sequência onde a criança refaz a trilha de tábuas de madeira caminhada por Benjamim no início do filme, da esquerda para a direita, direção ascendente de um caminho horário. A criança segue até o camarim de Benjamim, o mesmo do início do filme onde a Mulher lhe disse que ele deveria ter um Ventilador. A menina deita na sua cama, olhando para o Ventilador que junto de uma santa protetora, no alto de um altar, símbolos de conquistas e fé. Ademais essas as referências já citadas achamos importante citar mais algumas que fazem parte do universo transtextual do roteiro. O nome Benjamim é uma homenagem ao primeiro palhaço negro brasileiro do qual se tem registro, Benjamim Oliveira (1870-1954). A escolha de Paulo José para dar vida ao palhaço Puro Sangue, além de ser uma singela homenagem ao ator, aconteceu num momento delicado da carreira de Paulo José, quando este ao trazer a público a notícia de ser portador do mal de Parkison, sofria com boatos que o desacreditavam profissionalmente. A cena final, da menina que segue o caminho da tradição circense lembra a ciranda final de 8 e ½ de Fellini, onde assistimos um pequeno garoto tocando pífaro, o símbolo criança a continuidade de uma tradição circense, cinematográfica, círculos que se encerram no encontro do espectador com o artista, do artista com a história, do artista consigo mesmo, num jogo de espelhos que projeta e busca o seu próprio reflexo. Tanto em “O Palhaço” quanto e em “8 e ½ “ecoam o grito popular que clama_ O espetáculo não pode parar!

Coragem Brasil, cultura e arte resistem, o espetáculo não pode parar.

Referências:
ABREU, Eliane Maria de. A vida é um filme, um sonho. A des razão de amar em Federico Fellini. Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, PUC. 2015.
CHAPLIN, Charles. Luzes da ribalta. Reino Unido, 1952. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SaikFyFyYnc Acesso em: 09/06/2018.
FELLINI, Federico. (Dir. Rot). Oito e meio. Itália. 1963 Disponível em: http://filmescult.com.br/oito-e-meio-1963. Acesso em: 12/06/2018.
MELLO, Selton. (Dir. Rot.) O Palhaço. Globo Filmes, 2011. (DVD).

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