A meu ver, um dos mais importantes deveres das pessoas mais velhas é o dever de prestar depoimento, testemunhar valores, dizer sobre aquilo que o depoente acredita ser correto.
Essa obrigação alcança todos os idosos, não importa a profissão que exerceram ou ainda estejam exercendo.
É possível depor sobre todos os aspectos da vida (uma espécie de autobiografia), ou apenas sobre um ângulo da existência, ou sobre um fato isolado.
O mais importante, para que o depoimento seja válido, é que seja sincero, ainda que possamos incorrer em falhas ou omissões por lapso de memória. Aliás, ter alguns esquecimentos é um dos direitos das pessoas de Terceira Idade.
O depoimento que presto a seguir refere-se a um aspecto da vida, a uma atividade desempenhada.
Fui membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória, convidado para esse encargo pelos bispos Dom João Baptista da Mota e Albuquerque e Dom Luís Gonzaga Fernandes. Naqueles tempos, em inúmeras situações concretas, a palavra oficial da Igreja foi expressada pela Comissão Justiça e Paz, por entenderem os Bispos que, diante de algumas matérias, a palavra mais apropriada devia ser dita por um organismo eclesial leigo.
Depois de convocado para a CJP pelos Bispos, fui eleito seu presidente, pelos companheiros que integravam referida Comissão.
Pelo fato de estar exercendo a presidência da Comissão de Justiça e Paz respondi a processo disciplinar perante o Conselho Superior da Magistratura, que é o órgão que processa magistrados por condutas que sejam consideradas desvios éticos.
Entendiam os desembargadores que, como magistrado da ativa, não podia presidir associações. Não entenderam, ou não quiseram entender, que a Comissão de Justiça e Paz não era uma associação, mas um organismo de Igreja.
Quando recebi a intimação para a audiência, feita pelo Oficial de Justiça, em minha residência, telefonei para Dom Luís Gonzaga Fernandes pedindo que me aconselhasse sobre como eu deveria me defender.
Dom Luís aconselhou que eu abrisse o Evangelho e lesse aquela passagem: Quando fordes chamado a tribunal por causa do meu nome, não vos preocupeis com o que haveis de dizer. O Espírito vos soprará.
Fiz o que o Bispo sugeriu e pensei: se D. Luís disse que basta isso, estou preparado.
Perante a Corte, invoquei simplesmente a inviolabilidade da consciência para me isentar de punição.
O meu julgamento foi realizado em segredo de Justiça. Hoje posso contar isto porque estou aposentado. Se na época revelasse esses fatos, responderia a novo processo, desta feita por violação de segredo de Justiça.
Felizmente, pelo voto do Desembargador Homero Mafra, hoje falecido, fui absolvido. Se tivesse sido condenado, poderia ter sido excluído da magistratura ou recebido uma outra penalidade.
Integrei e presidi a Comissão Justiça e Paz quando o Brasil estava submetido a uma ditadura.
Em nome da Fé, eu e meus companheiros enfrentamos perigos. Um dos maiores sofrimentos pessoais que tive foi a ameaça de sequestro de meu filho único, fato que felizmente não se concretizou.
A Comissão de Justiça e Paz posicionou-se contra todos os abusos que então eram praticados, tanto em nivel nacional, como na reprodução local desses abusos.
Um dos heróicos membros da Comissão foi o Dr. Ewerton Montenegro Guimarães, hoje falecido, que lutou bravamente contra o Esquadrão da Morte. Certo dia o Dr. Ewerton, em conversa ocorrida na minha residência, disse: Dr. João, eu tenho dúvida de Fé, eu não tenho certeza da existência de Deus. Respondi ao Dr. Ewerton: meu caro Ewerton, a Fé não é uma proclamação verbal. Você é um homem de Fé porque sua vida é uma vida de luta pela Justiça e a Justiça é manifestação de Deus.
Tem Fé quem ama o próximo, mesmo sem proclamar o nome de Deus. Não tem Fé quem bate com a mão no peito e ignora o sofrimento dos irmãos.