Nas brincadeiras de criança com minhas irmãs e outros amigos, havia uma em que eu era sempre o ladrãozinho. Juntava aquele bando de gente para prender-me. Quase sempre eu conseguia escapulir.
Dimas, o bom ladrão, safou-se do fogo do inferno na última hora, ao pedir a Jesus que quando estivesse no Paraíso se lembrasse dele.
Bobo do outro que, pelo menos por desencargo de consciência, deveria também ter pedido ao Mestre que o salvasse. No entanto, como Jesus conhece o nosso interior, provavelmente não teria como resposta aquela frase que sempre me emocionou e emociona:
− Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso!
Assim, a Igreja Católica ganhou um novo santo.
Quando estava no colégio interno e era dia de saída para casa, invertiam o horário das aulas da tarde para a manhã, para que pudéssemos viajar no trem da hora do almoço.
Como sempre considerei São Lourenço o meu paraíso, nessas manhãs alegres, eu pegava uma grande borracha e escrevia: hoje mesmo estarás comigo no paraíso.
Enfiava a borracha no bolso e a trazia comigo...
Ganhávamos alguma mesada desde pequenos. Mas, cuidadoso, meu pai sempre recomendava: − com este dinheiro, só comprem coisas que não prejudiquem a saúde, como por exemplo, maçã, figo cristalizado e biscoito de polvilho. Mais nada. Chocolate, doce de leite, sorvetes e gelados, nem pensar.
Os primeiros faziam mal para o fígado e os outros para as amígdalas. Fui provar Coca-Cola com onze anos de idade. Defini a bebida como um gosto de plástico.
Como a mesada era controlada, um dia comecei a tirar dinheiro da gaveta da loja de meu pai. Primeiro, um cruzeiro, depois dois e depois mais. Assim, comprava tudo o que era proibido. Não me atacavam o fígado e nem as amígdalas. E como eram gostosas estas coisas, ainda mais com o sabor de escondido! Às vezes juntava o produto do roubo e dava até para andar a cavalo. Cheguei a comprar artigos natalinos, uma vez.
Mas, e o complexo de culpa, como ficava? Na hora em que meu pai ia fazer o caixa da loja, conferindo as entradas e saídas que eram anotadas a lápis, estrategicamente, eu ia tomar meu demorado banho de imersão. Então o escutava desesperado fazendo e refazendo as contas e querendo lembrar-se onde tinha sido gasto o dinheiro que estava faltando, que, aliás, nunca foi muito.
E se um dia ele descobrisse o que faria comigo? Iria para a cadeia? Ele iria me matar?
E o medo do castigo divino? Ladrão! Foi isto o que ensinaram a você no catecismo? Será que você não leu no exame de consciência do seu missal aquela lista imensa de pecados? Um deles perguntava o seguinte: roubei dinheiro de meus pais? Você não tem medo do fogo do inferno? Você não sabe que Deus castiga? Cuidado, menino! O garfo do diabo machuca muito!
Um dia, parei. Confessei diversas vezes o meu grande pecado e os padres de então ficavam horrorizados.
Acho que um deles chegou a me dar mil terços de penitência.
Cumpri a pena. Mesmo assim, achava que Deus não havia me perdoado.
Ou que o padre não havia escutado direito.
Confessava mais uma vez, persistindo o meu complexo de culpa.
Não me saía do pensamento a frase: − eu sou um ladrão!
Depois de muitos anos e já adolescente, tudo foi esquecido.
Mas, até hoje, quando me lembro de meu pai fazendo suas contas, dá-me pena.
E, como acontecia com o ladrãozinho nas antigas brincadeiras de criança e aconteceu com Dimas, o bom ladrão, eu me safei.
(Talvez por este trauma é que acabei me tornando um escravo de horários, de cumprir compromissos assumidos e de não querer decepcionar as pessoas quando me pedem alguma coisa. Um pequeno exemplo disto tudo aconteceu no Rio, por volta de 1963.
Era véspera de vir para São Lourenço, final de tarde, quando o porteiro Ramos veio me entregar uma carta de minha irmã Lúcia, dizendo que queria que eu lhe trouxesse “um batom Palermom, Kadija, cintilante, número 14” e que deveria ter, à venda, nas Lojas Americanas. Já estava relaxado, de banho tomado, esperando apenas que chegasse a manhã seguinte para vir.
Nem pensei. Levantei-me, imediatamente para ir até o Centro procurar o dito cujo. Passei por diversas lojas e perfumarias.
Cheguei em casa já de noite, cansado de tanto andar. Mas consegui trazer o que ela encomendara. Afinal, como ia decepcionar uma pessoa? No entanto, decepcionei-me, ao longo da vida, vendo que poucas pessoas agiram desta maneira comigo.
Não discuto quem esta certo e nem que está errado. Estou apenas relatando mais uma característica do etíope. Nunca mais quis roubar nem mesmo o que se esperava de mim...).