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Opinião
07/02/2019 11h34

Sob um céu brumadinho

Por Ana Terra Oliveira

Não foi o chão que tremeu, não foi o céu que desaguou, não foi o mar que recuou e jogou ressaca pelas beiras. Desta vez não. Desta vez foi o homem que fez transbordar as beiras de suas próprias construções, de seus próprios lagos e mares. Lagos onde eles depositam seus dejetos, tudo aquilo de que eles rejeitam. Rejeitos que tiraram o chão de muita gente, machucaram corações, fizeram chover lágrimas dos olhos - lágrimas marrons da lama que escorreu nas terras das brumas. Ali onde a manhã se levanta com nuvens a pairar no ar em um céu brumadinho.

Eu que frequentei a região de Brumadinho durante oito anos e morei ali nos últimos três, desfrutei do bom clima e de uma natureza exuberante a pintar o horizonte com muitas matas fechadas, um verde a perder de vista, águas abundantes a escorrer pelas pedras e pássaros a cantar bonito sem feriados. Naquelas paragens semeei flores, plantei hortas, pedalei por estradas de terra, escrevi poemas, avizinhei-me de toda a gente. Espalhados estávamos pelos inúmeros distritos e povoados onde algumas casas distavam umas das outras apenas metros entre janelas , enquanto outras ficavam escondidas a quilômetros no silêncio, em estradas atravessadas por uma ponte de rio, um trilho de trem, uma plantação de mexericas. E na estrada, no mais tardar, novamente surgiam pés de couve, galinhas e plantações de alface e novas janelas onde as caras se encontravam para saudar com um “bom dia”.

A região das brumas é muito convidativa, eu vi gente se mudar da Bahia indo morar ali em busca dos ares puros e onde a promessa de saúde parece boa - só perto da minha casa conheci três famílias. Vi gente fugir de seca em busca de prados e campinas verdejantes. Vi gente fugir das buzinas dos carros sob arranha-céus, os 40°C do meio-dia e as miragens de asfalto da grande metrópole em busca da paz das brumas. Aí eu vi foi muita gente! Vi gente em busca de novas experiências e oportunidades. Mas entre as brumas vi também o bem e o mal enredados lado a lado. Vi gente sofrida, comunidades aspirantes por vida digna, índices crescentes de alcoolismo, uso de drogas, desequilíbrios mentais e famílias desestruturadas. Uma região permeada por vidas emaranhadas entre abundância, belezas naturais, riquezas, bem-estar e vidas sufocadas por dramas humanos e suas misérias.

E morando ali, a gente, o povo, até sabia, mas não fazia idéia da dimensão do que se escondia entre tantas belezas, tanta árvore e entre homens e mulheres com suas histórias. Se escondiam os campos minados, os buracos cortados, e a exploração mineral. É assim, porque entre uma árvore e outra lá se foi a visão do todo! Do meu quintal eu escutava o trem apitar e vagões deslizavam para cima e para baixo, vezes ao dia, carregados com um pó escuro avermelhado. Quando eu saia de casa topava com caminhões na estrada para cima e para baixo adiante do meu carro poeirentos de um pó escuro. Mas a gente não pensava: “o que isso tem a ver com a minha vida?”. A mina estava lá, mineiros a trabalhar, outros estavam cá, e se as poeiras levantassem pelas dores da vida logo precipitavam e tudo seguia e parecia fluir, como fluía o rico município, com o PIB da mineração, e os vagões abarrotados. A gente desconfiava, mas nem imaginava conceber que sucederia tamanha destruição.

Há poucos meses me mudei de Brumadinho, não mais acordo com as brumas, não vejo todas as belezas naturais, nem meus vizinhos, nem as risadas das mulheres e crianças quando nos reuníamos para pintar e costurar na associação. Não ouço também meu marido voltar do trabalho a dizer das histórias alegres e também das tristes que haviam por lá. Não vejo os vagões, nem o pó, nem a poeira, que por aqui são outras. Mas a questão é que a barragem de Córrego do Feijão se rompeu. Não vi de perto a lama destruidora que invadiu nossos janeiros, mas eu vi a dor. A dor daqueles com quem compartilhei um mesmo céu. A dor que também é nossa.

E agora? Houve descaso? Houve imprevidência de autoridades? Houve negligência? Podemos falar em crime e vontade de lucrar mais? E eu penso na responsabilidade. Que situação! Refeitórios, prédios e barragem posicionados em locais estranhos, não parecendo ter lógica. E essa sirene que não toca?! Eu também me pergunto: “o que vale?”. Vale tanta exploração? Um país em que a exploração vem camuflada de desenvolvimento econômico, mas para o desenvolvimento econômico é aceitável a degradação humana e ambiental? Vale um minuto de silêncio para dizer um basta! Vale agora a paz! Paz para homens, mulheres e crianças que merecem respeito! Paz para a Terra que clama por preservação! Paz para os animais que querem viver com dignidade.

Agora só consigo pensar na responsabilidade: “o que a triste situação tem a ver com a minha vida?”. Não estou mais lá, mas agora sinto fortemente a impressão: “isso tem a ver com a minha vida sim”. Para onde iam todos aqueles vagões que vi passar? Para quê tantos caminhões? O que fazem com tanto minério?

Automóveis, celulares, arame farpado, pregos, martelos, foices, facas… e garfos e colheres, motores, tratores, rodas de bicicletas, fogões, fornos, computadores, grampeadores e furadores. Uma infinidade de eletrônicos, eletrodomésticos e mesas, cadeiras, armários, camas, geladeiras, fornos microondas, panelas. Ziperes de roupa, botões, fivelas de cinto. Janelas e portas e ônibus e aviões e casas e prédios...

E sem contar que quase tudo vem de uma indústria que moveu estruturas e máquinas feitas de aço e ferro-ligas. E agora eu entro nos supermercados e vejo os alimentos processados e embalados nas prateleiras e me lembro do pó escuro de Brumadinho.

São muitas as coisas que me fazem pensar que eu faço parte de uma teia, como uma teia de aranha, que embora possa ser invisível e transparente, cada fio está bem entrelaçado, e tudo, mas tudo está conectado. Embora não vejo o fio que nos liga, estamos conectados! Vale um minuto de silêncio para pensar: “o que é realmente necessário em nossas vidas, o que é essencial, o que é o supérfluo, o que é excesso?”.

Concordo plenamente com você que a tecnologia é importante. Mas em uma era de aço, petróleo, lucro e consumismo em primeiro lugar, vale nos perguntar: “quando vamos definitivamente optar pelo sustentável, pelo responsável, e pelo respeitável?”.

Que a paz seja o nosso guia, paz para o sistema econômico e social, paz para os nossos modos de vida, que precisam ser éticos, certamente reinventados, muitas vezes superados e mais ainda transformados. E eu que sou parte da teia posso fazer “algo” agora, é também a minha responsabilidade!

Ana Terra Oliveira mora em São Lourenço, é psicóloga, escritora e contadora de histórias.

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