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Opinião
03/04/2013 08h48

Voluntários (II-final)

Filipe Gannam fala de sua família e o orgulho que tem da profissão

Quando éramos visitados por mamãe, não gostava de vê-la trabalhando muito. Mas era bom ficar livre da comida de pensão, de bares, de faculdade e comer a comidinha que ela fazia.

Uma ocasião, ela chegou, depois de muito tempo sem nos visitar  e preparou um quibe para o nosso jantar. Mas, na hora de saboreá-lo, depois de esperar por todo o dia, verificou-se que o quibe estava doce. E era verdade: desacostumada daquela cozinha e sem saber onde guardávamos o sal e o açúcar, trocou os dois recipientes e colocou açúcar no quibe. Ela ficou tão triste, que acabei comendo o quibe mesmo doce. Deve ter sido a única vez na história do mundo que alguém comeu doce de quibe. Quem sabe na próxima visita ao Oriente Médio eu passo a receita para meus parentes e ela ainda faz sucesso e pode ser assinada nos livros de receita: BY Julieta Farah Gannam?

Eram inacreditáveis os lanches que fazíamos naquele apartamento. No mínimo vinte qualidades de alimentos. Às vezes, ia toda a família passar férias lá e eu não vinha para São Lourenço. Eram dias felizes. Mas tudo com pouco conforto, afinal eram apenas três quartos para dez pessoas e mais um para a empregada, que acabava tendo mais espaço do que nós próprios.

 O máximo de tempo que passei sem vir a São Lourenço foram seis meses, entre março e setembro de 1967. Nunca senti tantas saudades em minha vida! Foi naquele apartamento que, chegando certa vez em 1966, num de meus costumeiros dias de depressão e ouvindo minha jovem irmã a cantar uma música de Leno e Lilian chamada Pobre Menina,transformei-a numa verdadeira menina empobrecida ao dizer:

−Cala a boca, fica quieta, nesta casa não existe lugar para manifestações de alegria! Só de tristeza.

 Pobre menina!

Ali também recebi visita de diversos colegas em várias etapas de minha vida, para estudar, para conversar, para preparar alguma paquera. Foi lá que vivi as primeiras e grandes paixões de minha vida. Foi lá que promovi vários encontros de minha mãe com seus irmãos. Ela tinha mania de se acomodar e não procurá-los. Mas não me conformava com isto, fazia com que ela ligasse para todos ou quase todos e acabavam se encontrando. Pegava o telefone, discava e punha no ouvido dela. Aí, eu a via realmente feliz.

Posteriormente, ouvi de seus lábios o agradecimento por tudo o que fiz para mantê-la unida a eles.

Dali saí, um dia, para sempre, pedindo que minha irmã tirasse uma foto, da janela, com minha mala, esperando o táxi para ir até a Rodoviária.

 Foi ali que cheguei, um dia, inseguro, com dezesseis anos, sem saber nada do que aconteceria em minha vida. Foi dali que saí para lutar pela vida, onze anos depois, iniciando, poucos dias depois da partida, em 2 de abril de 1974, minhas atividades de consultório. Espero que elas durem, ainda, muitos e muitos anos, pois posso dar testemunho do quanto amo a profissão que escolhi e com que carinho atendo a meus pacientes. Se depender de minha vontade, quero continuar indo ao meu consultório e trabalhando até o último dia de minha vida. Os anos me ensinaram que amar a profissão é extremamente gratificante.

(Depois daquela fase, quando o apartamento não estava alugado, às vezes ia até o Rio e lá me hospedava. Cheguei a passar cinco Carnavais seguidos, no Rio, com a Eliane, de 1983 a 1987. No mesmo apartamento onde tantas vezes fiquei imaginando quem seria, um dia, minha esposa. Mas, cada vez sentia-me com mais desconforto ao hospedar-me lá. O abandono era total. O apartamento transformou- se numa sombra do que foi ao ser comprado e me dar tanta alegria. Então, até seu cheiro era diferente, era de coisa nova, com a mobília bonita. Acabei sugerindo a meu pai que o apartamento perdera sua razão de ser e que era melhor que o vendesse. Quando precisássemos ir ao Rio, ficaríamos muito mais confortáveis instalados num hotel. Num dia qualquer, em janeiro de 1988 passei por lá para despedir-me, pois naquele mesmo mês o apartamento foi vendido. Este foi o fim de um caso, em minha vida, que durara mais de 26 anos... Mas meus rabiscos nos elevadores e em suas placas externas com datas e nomes de meninas que tanto 86 “amei” permaneceram lá para sempre. Vão sobreviver a mim. Até mesmo nas paredes ainda existem alguns furos feitos com minhas chaves com alguns escritos e datas. Em se tratando de chaves, quero ressaltar que, até hoje tenho a chave original,numerada, da porta da sala daquele apartamento. Ela me foi dada quando fui para o Rio estudar, em 1963. Nunca a perdi. Todos os irmãos que moraram comigo chegaram a perder chaves, talvez até por mais de uma vez e morando no Rio menos tempo do que eu. Repito minha pergunta de outros escritos: −será que esta maneira de ser é boa para mim ou para os outros?)

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