16/09/2022 13h50
Juíza vê 'fatos graves' em reportagem sobre royalties e aciona MPF
A juÃza federal da 1.ª Vara de Niterói, Helena Elias Pinto, afirmou ver "fatos graves" em reportagem do Estadão a respeito do uso de uma entidade sem fins lucrativos para representar municÃpios em disputas bilionárias por royalties do petróleo. Em despacho, a magistrada abriu espaço para manifestação do Ministério Público Federal (MPF) em relação ao tema.
Helena é responsável por julgar, em primeira instância, uma ação da prefeitura de Niterói (RJ) contra uma mudança na partilha de royalties do petróleo que reduziria os repasses ao municÃpio. A alteração nos pagamentos foi provocada por uma ação dos municÃpios de São Gonçalo, Magé e Guapimirim, todos no Rio, em que obtiveram na Justiça Federal, em BrasÃlia, uma decisão para enquadrá-los na partilha dos royalties.
Com a decisão, a Agência Nacional de Petróleo (ANP) foi obrigada a pagar R$ 639 milhões às três cidades, que foram descontados de repasses que antes seriam destinados a Niterói, Rio de Janeiro e Magé.
Especialistas em Direito Penal e Administrativo questionam a legalidade do uso de uma associação sem fins lucrativos para captar clientes entre municÃpios em ações bilionárias pelo enquadramento na partilha dos royalties do petróleo. Eles também veem uma possÃvel ilegalidade na subcontratação de escritórios de advocacia em casos nos quais a entidade e as bancas são contratadas sem licitação.
A magistrada fluminense já havia atendido a um pedido da prefeitura de Niterói e suspendido a mudança dos repasses que havia sido decidida pela Justiça em BrasÃlia. A decisão de primeira instância, no entanto, fora cassada pelo desembargador do Tribunal Regional Federal da 2.ª Região (TRF-2) Messod Azulay. Nesta quinta-feira, 15, Azulay recuou em sua decisão após tomar conhecimento de que a presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministra Maria Thereza de Assis Moura, suspendeu a decisão da Justiça Federal em BrasÃlia.
No domingo passado, 11, o Estadão mostrou que São Gonçalo, Magé e Guapimirim contrataram a associação Nupec e o escritório do advogado Djaci Falcão Neto, filho do ministro Francisco Falcão, do STJ. Os contratos são investigados pelo Ministério Público do Rio.
O Estadão apurou que a entidade e associados podem faturar até R$ R$ 300 milhões em royalties em contratos sem licitação com municÃpios que preveem 20% em honorários em caso de êxito. Além de Djaci, fazem parte dos associados da Nupec HercÃlio Binato, genro do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), e VinÃcius Gonçalves Peixoto, que é alvo da Operação Lava Jato do Rio.
Após a publicação da reportagem, nesta quinta-feira, 15, a juÃza de Niterói determinou que se junte aos autos da ação da cidade contra São Gonçalo, Maricá e Magé a reportagem do Estadão. A decisão foi tomada de ofÃcio, ou seja, sem atender a um pedido das partes no processo. "Tendo em vista a matéria publicada no jornal 'O Estado de S. Paulo' neste último domingo sobre o tema 'exploração de petróleo e gás', e a gravidade dos fatos ali noticiados, que se relacionam em tese com o tema dos presentes autos, providencie a secretaria deste juÃzo a juntada da cópia da reportagem", escreveu Helena. No mesmo despacho, a magistrada mandou o MPF e os municÃpios se manifestarem.
Legalidade questionada
O Estadão mostrou que o MP do Rio e o Tribunal de Contas do Estado (TCE) investigam contratos sem licitação firmados pela Nupec (associação sem fins lucrativos) e bancas de advogados para mover ações em nome de municÃpios para enquadrá-los na partilha dos royalties. Decisões judiciais a favor dessas prefeituras geraram pagamentos de R$ 1,5 bilhão à s cidades.
Parte dos contratos sob investigação foi firmada sem licitação. Em outra parte, houve certame, que chegou a contar com apenas um concorrente.
Sob condição de não comentar casos especÃficos ou a atuação dos parentes do Judiciário, especialistas veem irregularidades e até crimes no uso da associação para a captação de clientes de advocacia remunerada. O Estadão obteve acesso a pelo menos três precedentes que punem o uso de associações como se fossem bancas de advocacia na Justiça e no Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
O ex-presidente do Tribunal de Ética da OAB de São Paulo Carlos Kauffmann afirmou que há indÃcios de "exercÃcio ilegal" da advocacia por parte da entidade. "O estatuto é destinado aos advogados. A entidade não se submete ao estatuto. Se submete à s leis. Existe o exercÃcio ilegal da profissão", diz.
"Nenhuma entidade que não seja escritório de advocacia devidamente inscrito e regulado na OAB pode ser contratada para prestar serviços de advocacia. Nenhuma entidade pode receber procuração para prestar serviços jurÃdicos. Portanto, ela não pode repassar procuração para prestar serviços jurÃdicos", afirma. Segundo Kauffmann, "fere o estatuto o advogado que se usa dessas entidades para angariar clientes e prestar serviços jurÃdicos".
O ex-controlador-geral da União Valdir Simão diz que, nos casos em que a contratação é feita sem licitação, e justificada pela especialização das bancas de advocacia, "não faria sentido haver terceirização da atividade finalÃstica, para a qual o profissional de notório saber foi contratado". "Como é que o municÃpio vai remunerar depois esse profissional que prestou serviço sem o contrato? Em tese, isso é uma irregularidade, porque aquele que representa o municÃpio, além da procuração, tem de estar também munido de um contrato com a administração pública que dê a ele poderes para representá-la", afirma.
Investigações do TCE ressaltaram o fato da Nupec ter em seus quadros um advogado que foi condenado à proibição de contratar com o poder público justamente em razão de irregularidades anos atrás envolvendo a defesa de municÃpios pelo enquadramento nos royalties.
Simão ainda afirma que, com a condenação, o advogado "não poderá atuar, mesmo que de forma indireta". "O processo de contratação ou licitação pode ter sido irregular. Se houve condenação transitada em julgado em ação de improbidade administrativa, a sanção continua valendo. Esse foi o entendimento do STF em relação à retroatividade das alterações na lei de improbidade", diz.
Já o procurador regional da República Bruno Calabrich afirma ser "inusual" a contratação de uma associação para serviços advocatÃcios. "Você contrata um escritório. Talvez uma associação pudesse te encaminhar para uma contratação, mas via associação não é uma coisa comum".
Em nota, a Nupec afirma que, "por meio de seu corpo jurÃdico, a instituição é uma das poucas especializada em Direito Regulatório de Petróleo e Gás Natural, notadamente o enquadramento de entes públicos em novas hipóteses de recebimento de royalties do petróleo e gás natural, que são denegadas e sonegadas pela Agência Nacional do Petróleo".
Segundo a associação, o "objeto do contrato com a administração pública consiste em serviço técnico especializado de natureza singular", o que é autorizado pela Lei de Licitações e encontra precedentes no STF e em tribunais de contas dos estados. A entidade ainda ressalta que os valores dos contratos "observam o valor praticado pelo mercado, conforme tabela de honorários da OAB e resoluções dos Tribunais de Contas".
A Nupec ressalta que sua remuneração se dá a partir do êxito nas ações, o que está previsto no Código de Ética da OAB.
Fonte: Estadão Conteúdo