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São Lourenço - Notícias
22/05/2019 10h47

O presente

Por Henrique Selva Manara

Como lhe veio ele não sabia dizer. Não sabia se era pela sensação do casaco velho a roçar no seu braço, sensação áspera e ao mesmo tempo confortável de quem tem um cobertor quadriculado recortado como figurino.

Não sabia se tinha lhe vindo por causa do som do velho violino que atravessava a janela do prédio vizinho e se harmonizava com o som da plateia a lhe observar. Podia ser também pelo cheiro de grama molhada ali da praça, toda orvalhada, era um picadeiro de fadas em gotas d’água. Também poderia ser pelo resto do gosto do beijo que tinha acabado de ganhar de Filó, aquele gosto de tangerina continuava em sua língua a lhe chamar para alegrias alaranjadas.
Não sabia dizer, não sabia mesmo. Mas o fato é que Ernesto estava como nunca já havia estado antes, estava presente.

Ao encarar as figuras que vieram lhe encontrar, sentiu sua respiração como se fosse a primeira vez e nasceu para aquele instante sem saber se conseguiria nadar até o outro lado ou não, apenas respirou e nasceu.

A cada passo dado encarava uma nova jornada entre o aqui e o ali. Entre seus olhos, como uma ponta de flecha, o nariz vermelho era a ponte entre o dentro e o fora que aconteciam no mesmo instante, o inesperado e famigerado instante prometido, que em várias primaveras se parecia demais com Godot, nunca chegava, mas hoje, nesse único hoje que nunca retorna, se fazia como uma valsa de assaltos e risos, de sóis e labirintos, de repulsas e abraços, tudo ali, tudo naquele agora já não esperado. Seu nariz vermelho completava o triangulo entre ele e os outros, e uma santíssima trindade contemplava o jogo entre o mundo e ele.

Tudo que era grande e assustador foi se tornando pequeno e brinquedo, assim como tudo que era ínfimo e apoucado foi crescendo em diversão como um confeito em dia de festa. Tudo era água e praia, era chocolate e canela, era a primeira bicicleta, o primeiro beijo, o primeiro pum, tudo era pegar e soltar para pegar de novo e soltar mais infinitas vezes. Era assim, azulzim igual ao beija flor.

O presente não tardava a se tornar ausente, porém Ernesto estava esguio e ligeiro, brincava com cada perda e abraçava cada vazio, não sabia de mais nada, só sabia que queria estar ali, sem pressa de ir embora.

Queira estar ali com aquelas pessoas, com aqueles cheiros, aqueles delírios, e eles por sua vez, lhe ofertavam a grande base do triângulo, lhe ofertavam o estar junto, mais um pouquinho e mais um pouquinho e mais um pouquinho... que parecia que o sonho era eterno, que lá longe os espertos nunca os poderiam alcançar.

Resistiam assim no presente, juntos, sem soltar a mão de ninguém, sabiam que a chuva que vem também vai, e assim juntos de Ernesto preferiram brincar naquela manhã, naquela tarde, naquela noite, como “parceiros do futuro libertados”, dançaram existindo, em um minuto, um minuto, um minuto, em todos os minutos do mundo, do chão para o alto, como diziam os mais velhos _“ALLEHOP”.

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