“Navegar é preciso viver não é preciso”. Se perder, se deixar a deriva, se descobrir no vazio. Por muito tempo via nessa frase somente a afirmativa da necessidade de se navegar, sair de seu lugar, de sua pátria, de seu lugar de conforto, para em outro lugar se encontrar. A frase, para mim, indicava que era preciso se mover para se encontrar, para encontrar um sentido nisso tudo que chamamos de vida, e que viver, simplesmente viver, não trazia nenhum sentido maior se não nos movêssemos. Fernando Pessoa retirou essa frase dos navegadores antigos, e Caetano Veloso a “sampleou” do poeta moderno. Segui navegando nas estradas, no começo meus barcos eram caminhões e carros de passeio que me davam carona, me tiravam da minha cidade natal até outras vilas e matas. Primeiro foram lugares mais próximos, de São Lourenço para São Tomé das Letras, Aiuruoca, depois um pouco mais ousados, Ubatuba, Trindade, conhecer e vivenciar o mar e suas promessas. Quando a decepção acampou no peito foi a hora de dar o primeiro basta. Aos 20 anos, com pouca renda, vendi todos meus cds, livros, gibis, meus quadros por preços baratos, e em 6 meses silenciosos juntei dinheiro para me mudar para Salvador. Cheguei na cidade com nome de pai e energia de mãe numa lua cheia, e lá fiquei mais três luas. Quatro luas cheias na Bahia de todos os santos foi o tempo do meu rito de passagem interna para a idade adulta, a travessia que dividiu as águas de quem eu queria ser para quem eu era realmente naqueles anos. Na Bahia cheguei pobre e voltei com menos dinheiro ainda, mas se aportei menino, voltei homem que tinha trilhado caminhos, caboclo que tinha realizado sua gira. Lá vivi num pensionato de 5 quartos onde moravam eu e mais 25 pessoas. Morei junto de pessoas que só ficavam durante a semana para trabalhar e voltavam para o interior nos fins de semana, trabalhadores de carteira assinada em supermercados, padarias, feiras, estudantes de cursinhos, uma mãe solteira e sua filha, duas garotas bonitas que faziam programas a noite, evangélicos que tentavam mudar a cabeça da maioria que morava no prédio mas não conseguiam, e Dona Yara, a dona do apartamento e nossa chefe no dia a dia da casa. Eram muitas diferenças, diversas raízes, histórias, origens, e convivíamos muito bem, havia tolerância e escuta, estávamos no mesmo barco humilde a velejar nos dias e noites de Salvador. Minha jornada já havia começado e eu começava a entender que mesmo cansado e com medo muitas vezes, tinha feito a escolha certa. Em Salvador fui estudar no MAM, Museu de Arte Moderna da Bahia, e pelo menos quatro dias da semana descia o Elevador Lacerda e subia contornando o Iate Club até o Solar do Unhão, assistindo ao maravilhoso por do sol atrás da Ilha de Itaparica. O desafio de usar o pouco dinheiro que tinha para experimentar aquela vida totalmente nova era uma experiência mística. Dedicava quase todo meu tempo consumindo arte de alguma forma, fosse ela qual fosse. Se não estava nos ateliês do MAM, ou nas aulas teóricas, ia para as embaixadas da Alemanha e da França ler livros, ver vídeos (ainda em VHS), ouvir discos, passava quatro, cinco, seis horas dentro dos acervos consumindo um universo cultural que me enchia de mais e mais desejos de fazer. Foi em Salvador que conheci as obras de Iberê Camargo e Anselm Kiefer, que marcaram minha definitivamente minha forma de ver e sentir as pinturas abstratas. Quase todas as tardes que estava no MAM passava cerca de 40 minutos em silêncio observando a imensa tela O MORCEGO de Iberê Camargo. Era como se eu estivesse meditando, só que em vez de olhar os raios do sol, eram as grossas pinceladas de Iberê que me arrebatavam. Ali aprendi uma coisa sozinho, é muito diferente você olhar para um quadro por muito tempo e olhá-lo por poucos minutos. A pintura nos fala primeiro aos olhos, mas o tempo nos permite desvelar camadas que não se abrem no primeiro instante, é preciso calma e curiosidade para se conhecer o que nos aparece a nossa frente. Hoje isso parece tão complexo, sempre nos é possível uma fuga no nosso falso terceiro olho, nosso tempo e encontro com os espaços e presenças se diluem e se dissipam na falsa realidade de compartilhamentos digitais. Mas esse é o nosso presente que precisamos reinventar. Talvez o que tenha sido mais importante para mim quando fui para Salvador, tenha sido me dar a permissão de errar e assumir meus erros. Saía de um momento que muitos opinavam sobre quais os caminhos eu deveria seguir. Amigos, colegas de trabalho, parentes. Lá eu pensava: farei as coisas do meu jeito, se eu acertar a vitória é minha e ficarei feliz, mas se errar e me der mal não poderei por a culpa em ninguém, a escolha foi minha, e isso ninguém irá me tirar. Foi o melhor presente que me dei. Ali me tornei responsável, ali me tornei pleno, ali ganhei minhas asas. Sabendo errar. Depois de muito tempo, já morando em Belo Horizonte, em uma noite de samba, sentado com a velha guarda de violeiros um senhor me falou novamente sobre o verso do poeta português. _“Navegar é preciso, viver não é preciso. Você sabe o que isso significa?” Ele me perguntou. Respondi que sim, que era preciso se movimentar na vida, procurar novos caminhos, não se estagnar. Para minha surpresa o músico me respondeu. “Muitos acham que é isso, mas não. Navegar é preciso, para sair em alto mar cria-se uma rota, um projeto, um estudo procurando se prever ventos, quanto alimento levar, quanto tempo, tudo com muita precisão, exatidão para que jornada se cumpra. Mas viver, viver é impreciso, é se deixar a deriva e seguir encontrando o que o destino lhe der. Viver é soltar as rédeas da viagem, é seguir.” A mesma frase que me jogou para frente há vinte anos hoje reverbera em novos encontros dentro de mim, assim como quando olhava o mesmo quadro por muito tempo hoje a cada dia ando não me reconhecendo e me conhecendo de novo, e de novo, e de novo. Somos tantos quando nos perdemos. Cria-se a rota, mas abrem-se as derivas. O olhar aberto pode nos dar tanto quanto o sonho perseguido, talvez mais, talvez o próprio sonho. Se perder pode ser o caminho para se encontrar, pode ser a trilha que te levará de volta para a casa que sempre esteve lá na frente, mas que era sempre a ponte para o aqui, para o agora. Calma, respire, abrace, deixe alguém chegar junto, chegue junto, perceba o que esta se passando dentro de você, experimente, não fuja mais, a vida é deriva e navegar é preciso. Tudo junto, movimento e vastidão, isso é tipo um sorriso, “não se avexe não que nada é pra já.’