19/02/2019 08h11
Bia Lessa leva a peça 'Grande Sertão: Veredas' ao cinema artesanal
A imensa procura por ingressos para o espetáculo Grande Sertão: Veredas inquietava sua diretora, Bia Lessa. Espetacular transposição para o palco da obra de Guimarães Rosa, a peça exibe toda a riqueza da arte teatral para ativar a imaginação como preservar as palavras do escritor mineiro. Com a impossibilidade de aumentar a já alargada turnê de Grande Sertão, Bia decidiu filmá-la. "Assim, o trabalho poderia atingir mais pessoas e em cidades onde a montagem não consegue chegar", diz ela, que está no processo de edição do material captado.
Importante ressaltar: não se trata de uma simples documentação fÃlmica do trabalho criado para o palco - Bia utiliza de recursos cinematográficos para surpreender uma vez mais, dessa vez na tela grande. Sua versão para o palco, ainda em cartaz no Sesc Pompeia, é um estÃmulo para os sentidos, uma vez que os atores se dividem em diversos papéis (tanto humanos como plantas e animais) para acompanhar a saga do jagunço Riobaldo (Caio Blat) ao atravessar o sertão para combater seu grande inimigo, Hermógenes (Leon Goes). Riobaldo é o homem atormentado tanto pela dúvida sobre a existência do demônio como pela paixão inconcebÃvel por alguém que julga ser outro homem, Diadorim (LuÃza Lemmertz).
"O que facilitou a transposição para o cinema é que gravamos todos os ensaios, pois não sabÃamos, no inÃcio, para onde o processo nos levaria", lembra Bia. "Em determinado momento, concluÃmos que o processo até poderia ser mais importante que o resultado final. Nos primeiros ensaios, o que interessava era chegar à vida, esquecer teatro, interpretação. No inÃcio, trabalhamos com cenas soltas, frases, à s vezes parágrafos. Nosso desafio era romper limites, pensar em estar, em ser, de forma radical. E, no terceiro ensaio, já nasceu aquela mistura de gente, bicho, planta."
Para a versão cinematográfica, que vai se chamar Travessia e deve estrear no segundo semestre, Bia concentrou-se com elenco e uma equipe de cinema em um enorme galpão. Para isso, foi preciso abrir mão da gaiola - a estrutura tubular colocada no teatro, na qual as cadeiras são colocadas em forma de U, onde, na região central, os atores permanecem durante todo o espetáculo, cuja duração é de ininterruptas 2h40. E, a fim de abrir mão de cenário - exigência habitual do cinema, que trabalha com o realismo -, a diretora pediu que tudo (chão, paredes, telhado) fosse escurecido por uma tinta preta. "Como se não fosse mais a solidão do confinado, mas sim a solidão do nada, lugar nenhum. Nesse espaço vazio, o sertão é quase uma abstração. E a violência mais temida é a do confinamento."
Como o espaço do galpão era maior que o do teatro, Bia convocou outros dez atores para engrossar as cenas de luta e caminhadas. O curioso é que, para a versão teatral, ela utilizou a linguagem cinematográfica, especialmente para construir a sonoridade - no teatro, o espectador pode usar fones de ouvido, pelos quais escuta separadamente a trilha sonora composta por Egberto Gismonti, as vozes dos atores, os efeitos sonoros e sons ambientes, levando-o a um nÃvel inédito de interação com a dimensão sonora do espetáculo.
"Meu dilema foi trazer isso para o cinema sem perder a originalidade", conta a encenadora, que se valeu de um ensinamento do cineasta suÃço Jean-Luc Godard: "Ele se incomodava, no cinema, com o fato de um ator, para falar de uma maçã, ter de mostrar uma maçã. Para Godard, o cinema precisa mostrar o que não é óbvio, ou seja, usar uma lente microscópica ou uma lente de aumento, para então ver uma maçã que não conhecemos".
Assim, ela consegue a licença poética para mostrar o ator Caio Blat como Riobaldo e também como um cacto e um sapo. Um belo exemplo de cinema artesanal, cuja intenção é revelada já na primeira cena: a câmera postada no alto flagra a chegada dos atores, que param em uma posição triangular. Em seguida, todos se transformam em pássaros para, em seguida, se levantarem, voltarem à posição e sair, novamente como homens.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Fonte: Estadão Conteúdo