01/04/2021 09h11
Com 12 filmes, mostra faz retrospectiva do cineasta chileno Miguel Littín
Miguel LittÃn tem o privilégio de ser um cineasta que virou personagem de Gabriel GarcÃa Márquez. Ele é o narrador e protagonista do livro-reportagem A Aventura de Miguel LittÃn Clandestino no Chile (Editora Record), fruto de 16 horas de conversa entre o diretor chileno e o escritor colombiano. Refere-se a uma proeza de LittÃn, o fato de, exilado e incluÃdo numa lista de inimigos juramentados do regime, ter cruzado escondido a fronteira, desafiado a ditadura e rodado o documentário Actas de Chile em 1986, sob as barbas do ditador Augusto Pinochet. O filme é uma das atrações - talvez a principal - da mostra Cinema Latino-Americano de Miguel LittÃn, composta de 12 longas-metragens que poderão ser vistos gratuitamente na plataforma SPCine Play (www.spcineplay.com.br).
Há muito a descobrir nessa retrospectiva de um dos principais cineastas latino-americanos, hoje com 78 anos. Em primeiro lugar, os filmes, claro, que são o principal. Mas a mostra programou também um debate mediado pelo cineasta Francisco Cesar Filho (diretor do Festival Latino-americano de São Paulo), o especialista em LittÃn Alexsandro de Sousa e Silva e a curadora da mostra LÃvia Fusco, que vai ocorrer hoje, 1º de abril à s 17h. Sábado, 3, à s 16h, Alexsandro ministrará uma masterclass ao vivo. Os dois eventos podem ser vistos no canal do YouTube da Mostra.
A trajetória cinematográfica de LittÃn, o espectador logo perceberá, é marcada pela trágica história do nosso continente, e, em particular, pela do paÃs natal do cineasta.
Os dois primeiros filmes programados - O Chacal de Nahueltoro (1950) e Companheiro Presidente (1971) são também os da primeira fase do diretor. Em particular Chacal, considerado por muitos sua obra-prima, junta uma história de impacto (baseada em fatos reais) à crÃtica social e à ousadia estética.
Chacal era como a imprensa sensacionalista chamava o autor de um crime pavoroso na localidade de Nahueltoro. Nelson Villagra interpreta o personagem paupérrimo e com deficiência mental, que vaga pelos campos chilenos e é acolhido por uma viúva e seus cinco filhos. Após a tragédia, o criminoso é recolhido a um presÃdio, onde é tratado, educado, socializado, até que a Justiça o considere devidamente apto... para morrer. Acredito que seja, ao lado de Não Matarás, do polonês Krzysztof Kieslowski, o maior libelo do cinema contra a pena de morte.
Já Companheiro Presidente (1971) mostra um agudo diálogo entre Salvador Allende, já eleito presidente do Chile pela União Popular, e o filósofo francês Régis Debray, que havia lutado com Che Guevara na guerrilha boliviana. Na entrevista, realizada em ValparaÃso, Debray não se comporta de maneira submissa ou reverente. Muito bem preparado, e radical, faz reparos ao caráter reformista da gestão Allende que, como se sabe, defendia a via pacÃfica para instauração do socialismo. Debray critica e Allende se defende muito bem, sem fugir a qualquer pergunta e sem responder de maneira sinuosa, habitual nos polÃticos. É um diálogo olho no olho. Franco e complexo. Impressionante.
A parte seguinte da obra de LittÃn é pós-golpe de 11 de setembro de 1973, data-trauma, que divide a história chilena e, talvez, mundial, por enterrar de vez a utopia de transição pacÃfica de Allende.
Em A Terra Prometida (1973), LittÃn evoca fatos reais do passado, lutas camponesas do inÃcio do século 20, quando uma breve República Socialista se instaurou no Chile e logo foi esmagada. Nelson Villagra, de El Chacal de Nahueltoro, interpreta o lÃder camponês José Durán. O filme estava sendo rodado no Chile, foi interrompido pelo golpe e terminado em Cuba. A mescla de realismo e alegoria - traço recorrente da obra de LittÃn - já se mostra com clareza nesta obra.
Atas de Marusia (1976) tem como intérprete d grande ator Gian Maria Volonté, um habitué de filmes polÃticos. O núcleo temático é um fato trágico da história chilena, quando, em 1907, uma revolta de trabalhadores é esmagada pelo governo para defender os interesses dos ingleses, então proprietários das minas.
O Recurso do Método (1978) é baseado na obra homônima do cubano Alejo Carpentier. O ditador interpretado por Nelson Villagra é uma soma de todos os déspotas latino-americanos, com seu autoritarismo, desprezo populista pelas classes populares, corrupção, cultura epidérmica e fantasias de pertencimento ao Primeiro Mundo. Uma obra barroca, brilhante, extraordinariamente bem interpretada.
Já A Viúva de Montiel (1979) inspira-se em contos do livro Os Funerais de Mamãe Grande, de Gabriel GarcÃa Márquez. Geraldine Chaplin interpreta a viúva, habitante de um lugarejo que bem poderia ser a Macondo imaginada por Gabo em Cem Anos de Solidão.
Alsino e o Condor (1982) é uma incursão de LittÃn nos meandros da revolução nicaraguense. O protagonista é o garoto que sonha voar e é levado por um oficial norte-americano a passear de helicóptero. Mas logo descobre que prefere o voo solo ao tutelado. Metáfora da autonomia revolucionária, num filme bonito, tisnado por certo tom chapa-branca no final.
Os filmes mais recentes, como Os Náufragos (1994), Terra de Fogo (2000), A Última Lua (2005) e Dawson Ilha 10 (2009) expressam um LittÃn ainda fiel ao estilo depurado ao longo dos seus anos mais produtivos e originais. Náufragos, que competiu no Festival de Gramado, é um filme sobre o retorno ao Chile. Terra de Fogo mergulha na Patagônia, e A Última Lua, na Palestina. Dawson é a denúncia de um campo de concentração de prisioneiros polÃticos no tempo de Pinochet.
Apesar da diversidade, a obra de LittÃn apresenta constantes identificáveis. Do ponto de vista temático, a preocupação com a História, sobretudo a da América Latina, com suas contradições e terrÃveis desigualdades sociais. O ponto de vista, explÃcito, é o das lutas populares. Um outro aspecto: LittÃn formou-se num tempo em que mudar a ótica para temáticas engajadas não era o bastante. Era preciso, também, descobrir a forma própria de expressão de uma postura tanto estética como ética e polÃtica. Daà o fascÃnio por obras que praticaram, na literatura, o que almejava para o cinema, como as de Gabriel GarcÃa Márquez e Alejo Carpentier. O resultado, um cinema ancorado no real, com asas soltas para a imaginação. Mescla de realismo e alegoria, tão fantasticamente trágico como o subcontinente que aspira retratar.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Fonte: Estadão Conteúdo