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27/10/2016 07h54

Com apuro e contundência, ‘Era o Hotel Cambridge’ fala da questão da moradia

A prometida edição política da Mostra 2016 só foi acontecer, de fato, com a exibição de gala de Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé, no Cinearte 1, terça-feira à noite. Lá, de fato, houve clima de festival político. O tema do filme - os movimentos sociais dos sem-teto - aumentou a temperatura e levou-a ao ponto de fervura.

Havia, claro, a presença do elenco, formado por alguns (poucos) profissionais e vários representantes dos sem-teto, que interpretavam a si mesmos. E como o filme, em si, é muito bom, a plateia reagiu de maneira positiva. Ouviram-se os já quase esquecidos (em São Paulo) gritos de "Fora Temer" e manifestações contra a PEC do teto dos gastos públicos. O longa será reprisado nesta quinta, 27, às 15h, no Cinesesc. Não se sabe se com o mesmo ambiente, mas, de qualquer forma, é obra a se ver sem falta. Lili Caffé soma a urgência do tema à ousadia da forma. E, como sabe qualquer cinéfilo (mas há críticos que ignoram), uma coisa não vai sem a outra.

O longa é apresentado como obra coletiva - entre o MSTC (Movimento Sem Teto do Centro), o GRIST (Grupo Refugiados e Imigrantes Sem Teto) e a Escola da Cidade. Narra o cotidiano de um grupo de refugiados, palestinos e congoleses, que divide com brasileiros uma ocupação no centro de São Paulo, num velho hotel abandonado. Vivem em tensão, pois uma juíza expediu a reintegração de posse do imóvel e serão desalojados pela polícia em 15 dias.

Enquanto isso, algumas lideranças planejam novas "festas", jargão para novas ocupações de imóveis abandonados. O roteiro é obra da própria diretora Lili Caffé, com Luis Alberto de Abreu (do Teatro da Vertigem) e Inês Figueró.

Não se trata de um registro bruto. Pelo contrário. Era o Hotel Cambridge passa por um minucioso trabalho de elaboração e depuração dos fatos. Se o que fica explícito, o tempo todo, é a situação de injustiça social, evita-se o caminho fácil da denúncia ou do miserabilismo cristão. Destaca-se a luta e esta ganha corpo, e muito corpo, no trabalho de ficção e mise-en-scène.

A distribuição de papéis também é fundamental. José Dumont, ator habitual dos outros trabalhos de Lili, funciona como espécie de mestre de cerimônias do grupo. É ele, na pele do personagem Apolo, quem dirige um laboratório do grupo, que deverá redundar num filme. Esse aspecto metalinguístico, do "filme dentro do filme", será usado de forma natural, sem sobrecarregar a obra com alusões pós-modernas. Mesmo porque, de qualquer forma, o foco é outro, e a questão social jamais é esquecida.

Mas, se o fundo social é onipresente, há tempo para o desenvolvimento e para os dramas e as alegrias dos personagens. E também para os conflitos entre eles, que acontecem em qualquer comunidade, ainda mais num grupo tensionado por uma desocupação imediata e a perspectiva nada longínqua de enfrentar a truculência policial e ir parar no olho da rua, ou talvez na cadeia. Mas, dentro da luta, há espaço para o humor e para o amor.

Desse modo, sobressaem as figuras de Apolo, mas também da atriz Suely Franco, com sua personagem um tanto delirante, egressa de um circo. Também destaca-se Carmem Silva, a líder da ocupação, com sua presença forte, dura, às vezes conciliadora, mas que acusa um momento de cansaço que a humaniza profundamente. Toda luta comporta esse instante de desânimo, que deve ser vencido para que tudo prossiga e Carmem vive esse momento de maneira dramática, pungente, e solitária - como convém a uma líder. É uma grande personagem. Um imigrante dá um toque romântico ao se apaixonar pela cinegrafista. E o exilado palestino, o poeta Isam (Isam Ahamad Issa) rouba as cenas de que participa. É ator nato, envolvente, carismático. Seu personagem é cheio da sabedoria universal de quem passou pela guerra e reencontrou-se na solidariedade.

Era o Hotel Cambridge é esculpido em planos precisos e de uma beleza dura. O trabalho de som é notável, passando ao espectador a tensão do ambiente. A passagem dos dias que faltam para a desocupação é marcada por um ruído forte, uma pancada sonora, como o fechamento de um portão de penitenciária, ou um gongo que assinala a proximidade do Juízo Final.

O cumprimento da ordem judicial paira como espada de Dâmocles sobre os ocupantes. E o plano final, com a câmera descendo e focando na vertical os andares do edifício, enquanto as bandeiras com as siglas dos movimentos sociais se apresentam, é de arrepiar.
Cinema social da melhor qualidade, Era o Hotel Cambridge coloca suas questões urgentes sem nada simplificá-las. Se o trabalho do filme é coletivo, encontrou uma diretora de mão segura para escolher os melhores caminhos estéticos, e os que produzissem mais efeito.

Coloca-se como um objeto incômodo na discussão social do regressivo Brasil contemporâneo. Se, às vezes, a questão social tem sido tratada como caso de polícia, como recomendava Washington Luis nos anos 1920, parece claro que, em 2016, os movimentos sociais não vão recuar. O filme deixa isso bem explícito, ao não tratá-los como coitadinhos, mas como cidadãos dispostos a fazer valer seus direitos.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Fonte: Estadão Conteúdo
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