10/11/2017 07h30
Em novo livro, Fernanda Torres traça retrato das artes no Brasil
ExÃmia escritora, Fernanda Torres sabia, desde o inÃcio, qual seria o tÃtulo de seu segundo romance, lançado agora pela Companhia das Letras. "Foi minha mãe quem sugeriu A Glória e Seu Cortejo de Horrores, do qual logo gostei", conta ela, referindo-se a uma das grandes damas das artes brasileiras, Fernanda Montenegro. A expressão é perfeita para designar o tremendo esforço que ambas, atrizes renomadas, dedicam à profissão. "Lady Montenegro trabalha até hoje com a volúpia de um estivador", já escreveu Fernandinha em uma crônica, publicada em 2010. "Fernanda sabe que é no cansaço da repetição, como um trapezista de circo, que se atinge a tão cobiçada mestria."
Portanto, é justamente sobre os percalços e os sucessos particulares de um artista de que trata A Glória e Seu Cortejo de Horrores. O livro, cuja qualidade revela um enorme salto conquistado pela autora desde sua estreia, em 2013, com Fim, acompanha a tortuosa trajetória de Mario Gomes, ator que teve um fulgurante inÃcio de carreira, nos anos 1960, tornando-se galã de novela, até sua decadência, culminando com um crime que o leva à prisão. É por meio desse arco que Fernanda traça um delicioso retrato do teatro, TV e cinema do Brasil, desde a década de 1960, marcada pela arte engajada, até os dias atuais e suas novelas bÃblicas e os palcos usados como fonte de renda.
"O teatro perdeu sua contundência", conta a autora, que traz como parâmetro a própria história: privilegiada, filha de pais com sólida formação artÃstica, ela frequentava os palcos desde pequena, guardando lembranças poderosas como o de ter assistido, aos 12 anos, a revolucionária montagem de MacunaÃma, de Antunes Filho. "Também mudou minha vida assistir ao grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, nos anos 1970."
Tamanha intimidade permitiu que Fernanda compusesse com precisão a trajetória de Mario Gomes - não confundir com o ator, que foi galã de novelas nas décadas de 1970 e 80. Afinal, o personagem se encanta com a montagem de Hair e a desinibida nudez de Sônia Braga e Armando Bógus em cena, no fatÃdico ano de 1968. Influenciado por esse ato rebelde, embrenha-se com colegas de faculdade no sertão nordestino, onde tentam levar o teatro revolucionário e lá descobrem a dura realidade moldada à bala por coronéis, que os obriga a voltar correndo para o Rio de Janeiro.
É no Sudeste onde a arte se revela transgressora, naqueles tempos de ditadura militar. Mas, depois de passar pelo experimentalismo de montagens como Tio Vânia, de Chekhov, e Navalha na Carne, de PlÃnio Marcos, Mario Gomes é seduzido pela telenovela, que o lançam ao estrelato nacional em uma época em que os folhetins chegavam a alcançar até 100% de audiência. É justamente aà que reside um dos inúmeros acertos do romance - o contraste que marcava a cultura nacional, dividida entre o teatro engajado (que logo perderia força até chegar ao atual modelo de financiamento por meio de leis de incentivo) e a teledramaturgia que, aos poucos, enveredaria para ramos de duvidosa qualidade, como os fenômenos bÃblicos.
"Hoje, a arte é criminalizada e, durante algum tempo, só as artes plásticas surfavam por fora - recentemente, chorei ao ver uma exposição de Hélio Oiticica em Nova York. É uma prova de que as artes visuais passavam pela prova de fogo de não ser popular. Mas agora, com as acusações de pedofilia, a nudez é censurada e isso se torna arma nas mãos de acusadores", comenta a escritora que, com o livro, buscou fazer uma reflexão sobre a intimidade moral das artes.
Ainda que exista uma geração entre a sua e a de sua mãe, Fernanda Torres buscou alinhavar o perÃodo histórico entre uma época e outra. A mãe, como já observou naquela crônica de 2010, tem a consciência de um pianista virtuoso, para quem "não basta acertar a nota, é preciso atingir a essência da partitura para se chegar a um resultado digno de ser chamado de música". Hoje, com a morte de seus pares, Fernandona brinca que faz teatro de catacumba. "Segundo ela, apenas o Zé Celso faz algo semelhante, no Oficina."
Tal transformação é representada na decadência fÃsica e artÃstica de Mario Gomes que, depois de se cansar do sucesso fácil da novela, decide abrir mão de um polpudo contrato para voltar à s origens, ao teatro de pesquisa, em uma desastrada montagem de Rei Lear, que praticamente o leva à falência. Sem ambiente na emissora que renegou e ainda martirizado pelo delicado quadro de saúde da mãe, Mario aceita um papel secundário de uma novela bÃblica, na esperança de poder salvar as dÃvidas. "A BÃblia é que nem a Janete Clair: não tem erro", justifica Lineu, um ator da velha guarda, revelando uma das pérolas do romance.
O livro, aliás, surpreende a cada capÃtulo com as observações certeiras que marcam a escrita de Fernanda Torres. "É na escrita que preciso de muito pouco para me expressar", observa ela. "É como uma guerrilha." E, a fim de defender a importância da cultura como decisiva para a reflexão e tomada de consciência, Fernanda se apoia em um autor clássico, William Shakespeare, cujas duas obras abraçam o romance como um cÃrculo fechado.
A história começa com Mario penando com uma montagem mal sucedida de Rei Lear. É justamente a peça em que o sofrimento é representado como condição do mundo tal como o homem herda ou constrói para si mesmo. O sofrimento é a consequência de uma tendência humana para o mal, tal como este é infligido nos bons pelos maus; ele tem capacidade para reduzir a humanidade a uma condição bestial sob um céu que aparenta indiferença.
E, ao final, depois se ser aprisionado por ter cometido um assassinato, Mario decide montar Macbeth dentro da prisão. Trata-se da peça que tem lugar em um mundo de dúvida e decisão, que tem muito de um pesadelo. Tal qual o desfecho do romance.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Fonte: Estadão Conteúdo