07/04/2015 09h10
Exposição em SP reúne obras do pintor alemão Anselm Kiefer
A ausência de 17 anos no circuito brasileiro do pintor alemão Anselm Kiefer, que completou 70 anos em março, é compensada por uma exposição individual com um tÃtulo simples, "Paintings" (Pinturas), mas conceitualmente complexa, que será aberta nesta terça-feira, 07, na White Cube de São Paulo. São apenas cinco pinturas de grandes dimensões (mais de três metros de altura por cinco de comprimento), que resumem de forma expressiva uma questão polÃtica amarga, a da reconstrução da Alemanha após a derrota da Hitler. Tão amarga que Kiefer teve de retomar suas antigas paisagens (sem perspectiva) dos anos 1980 para refletir sobre o assunto, uma pedra no sapato da história alemã.
Kiefer não havia nascido quando o secretário do Tesouro dos EUA, Henry Morgenthau Jr., apresentou, em 2 de setembro 1944, seu plano para transformar a Alemanha do pós-guerra num paÃs agrário. Seu objetivo era claro: desmontar seu parque industrial, inibindo a produção de armas para conter a força bélica alemã. A verdade, porém, vai além desse ponto, estabelecendo um arranjo arbitrário dos americanos com o poder soviético para dividir a Alemanha.
Teria sido uma experiência fascinante falar com Kiefer a respeito da divisão das duas Alemanhas após tantos anos - sua última exposição no Brasil foi em 1998, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), mas o pintor, que deveria vir a São Paulo para a abertura de sua exposição, teve de cancelar a viagem devido a um acidente em seu ateliê parisiense. Na época da última exposição brasileira, quando a Alemanha já estava reunificada, Kiefer mostrou outro tipo de ruÃnas, não alemãs, mas paulistanas, exibindo parte de sua série Lilith - vistas aéreas de São Paulo encobertas por uma espessa camada de pó e vestidos sobrepostos (das filhas de Lilith, a primeira mulher de Adão e encarnação do demônio no folclore judaico).
Logo à entrada da exposição, na sala esquerda da White Cube, uma tela da série Plano Morgenthau sintetiza a grande questão que caracteriza essas paisagens históricas de Kiefer desde 1981, quando ele transmutou a tradição romântica ao apresentar a Alemanha como um campo calcinado na tela, incorporando palha seca à massa de tinta. Era esse o palco vulnerável da tragédia alemã, segundo o Kiefer da onda neoexpressionista que dominou o mundo da arte nos anos 1980. Trinta anos depois, na série Plano Morgenthau, a palha é substituÃda por espigas de trigo, numa alusão direta à transformação da Alemanha do pós-guerra em nação agrÃcola destinada a viver exclusivamente para o pão de cada dia.
Na tela anteriormente mencionada, uma balança tenta equilibrar dois elementos, o enxofre (s) e o cloreto de sódio (sal). Em outra da mesma série Plano Morgenthau, um compasso divide o território alemão em dois, num comentário visual da maquiavélica ação polÃtica de Morgenthau, de tornar a Alemanha tão miserável quanto possÃvel - um plano tão cruel que até mesmo Churchill o chamou de "anticristão", só mudando de opinião quando Morgenthau acenou com os lucros que a Grã-Bretanha teria com a abertura de novos mercados que seriam perdidos pela Alemanha num estado pré-industrial.
Ao contrário das telas do perÃodo neoexpressionista, em que Kiefer preferia recorrer a uma dimensão mÃtica, reinventando a si mesmo e a história de seu paÃs com uma reinterpretação de prédios históricos - como o do Reichstag, desenhado por Speer para abrigar a chancelaria de Hitler-, nas pinturas das séries mais recentes ele usa seus dons de alquimista para regenerar a paisagem alemã calcinada pelas forças aliadas. Kiefer, obviamente, não faz isso para justificar a barbárie nazista, mas para mostrar que, a exemplo de outros alemães, sempre foi acossado pelos demônios da ocupação de seu paÃs por russos e americanos. Sendo a tela uma entidade fÃsica, ele a transforma num simulacro da paisagem real, cobrindo sua superfÃcie com a imagem fotográfica, depois pintada com uma espessa camada de tinta que remete à s pinceladas de Van Gogh.
A exemplo do pintor holandês, seu maior esforço está em inverter a perspectiva tradicional, eliminando o foco e extrapolando o espaço da tela para incorporar o espectador nessa paisagem - ou na trágica história que narra. Destroços, sobras de guerra e elementos extrapictóricos entram nessa composição da paisagem devastada. Na mais exuberante dessas ruÃnas, a tela "Plano Morgenthau: Saeculum Aureum", o "nigredo" que representa o processo alquÃmico de outra pintura da série é substituÃdo por uma transmutação da terra calcinada em vegetação verde e roxa, pisada e em decomposição, contrastando com um céu de folhas de ouro - metal precioso e incorruptÃvel, signo alquÃmico da perfeição eterna.
Destruir para regenerar é uma das etapas da alquimia - e também da sombria pintura de Kiefer, que vive dos resÃduos do passado para apontar o futuro. Nascido em 1945, em meio à s cinzas do Terceiro Reich, ele tomou para si a tarefa de refletir sobre sua história e a de seu paÃs. Se essa pintura é suntuosa é um pouco porque Kiefer, como a Alemanha, luta para corrigir seus defeitos. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
PAISAGENS
Galeria White Cube. Rua Agostinho Rodrigues Filho, 550, tel. (011) 4329-4474, V. Mariana. 3ª a 6ª, 11 h/19 h; sáb., 11 h/17 h. Até 20/6.
Fonte: Estadão Conteúdo