25/11/2022 17h40
Flip: 'Precisei escrever para sobreviver', diz Nastassja Martin
Nastassja Martin leu Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss, quando tinha 16 anos e ficou assombrada. Foi seu primeiro de antropologia. Mais ou menos nessa época, procurando uma profissão, ela não encontrava nada que correspondesse ao que a inquietava desde os 7, 8 anos, mas que ela não sabia explicar. Algo sobre pessoas vivendo um modo de vida completamente diferente do dela, na França.
Não era sociologia. Nem biologia. Tinha a ver com natureza, com cultura e com a relação entre humanos e não humanos. Acabou na sociologia mesmo, e perto do fim do curso ganhou um livro de presente de um professor. Foi lendo Outras Naturezas, Outras Culturas que tudo se encaixou - nas palavras de Philippe Descola, ela descobriu a teoria que explicava o que sentia. Dali, foi um pulo para que ele a orientasse no mestrado.
Assim começou a história que levaria esta jovem francesa, hoje com 36 anos, para os confins do mundo - para encontros com os gwinchin, no Alasca, e os even, no extremo leste da Sibéria, grupos de pessoas que vivem na natureza profunda. E para, enfim, o encontro com o urso que mudaria tudo na sua vida - ou, em suas palavras, tornaria tudo mais real.
É sobre essa história, a experiência de se ver cara a cara com um urso, de lutar com ele e sobreviver, narrada em Escute as Feras (34), que a antropóloga fala neste sábado, 26, à s 17h, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), na mesa que divide com a navegadora Tamara Klink (é possÃvel ver pelo YouTube).
"Eu experimentei em meu próprio corpo o que significa a cosmologia animista", resume a antropóloga nesta primeira entrevista concedida em Paraty, numa manhã quente e úmida bastante diferente da realidade desses lugares onde viveu a -50ºC. Mas ela estava ok com o calor tropical e conversou tranquilamente sobre esta história recente - de 2015 - que mistura pesquisa de campo, sonho, ancestralidade, vida e quase morte.
"Precisei escrever essa história para que ela saÃsse do meu corpo e eu pudesse sobreviver. Esse é o primeiro significado deste livro para mim: encerrar e compartilhar com outras pessoas para que eu possa criar de novo as minhas fronteiras e me libertar dessa história. Mas o livro é, também, um manifesto sobre como pensar a antropologia e a cosmologia indÃgena de uma forma diferente", explica - e aqui ela se refere também à questão do sonho, tratada por muitos como uma crendice e defendida por ela como algo "tão real quanto a mais dura das ciências".
Sonhos são importantes em Escute as Feras, que vai virar peça de teatro no Brasil, e em seu novo livro, À LEst Des Rêves, sobre a convivência com os nômades even, histórias mÃticas e o significado do sonhar - para ela, os sonhos nos preparam para alguma coisa, nos conectam com outras almas e outros seres e, em alguns casos, nos enlouquecem. "E sonhar é um lugar de resistência", ela diz ainda. Para que as pessoas reaprendam a sonhar, ela sugere que saiam de suas zonas de conforto.
Escute as Feras é um belo livro com reflexões acerca do nosso modo de estar no mundo e da nossa relação com os não humanos, sobre os significados deste momento de extremo risco, seu resgate, as operações, a recuperação e a volta ao local onde tudo começou para, como escreveu, e repetiu agora, reconstruir suas fronteiras.
Tem sido um longo processo de cura, ela diz, e de cura de muitas feridas diferentes, com cicatrizes visÃveis e invisÃveis. Depois de sete anos daquele fatÃdico dia de agosto, ela diz que as coisas estão melhorando. "Acredito que estou chegando ao final desse longo processo e é por isso que não gosto de falar daqueles minutos."
Dói relembrar, e a dor é fÃsica também. Mas ela fala brevemente, e diz que foi tudo muito rápido: "Você está na frente do urso, pensa merda, vou morrer e depois não morri. Ela estava sozinha, e na montanha não costuma ter urso. Daà a ideia, dos seus amigos de lá, de que o encontro tinha de acontecer.
Esta é sua primeira vez no Brasil. Em 2021, ela participou de uma conversa online com o indÃgena Ailton Krenak. "Fiquei muito tocada com a honestidade com que ele fala e conecta cosmologia e polÃtica sem rotular nada." Ainda neste sábado, em Paraty, ela estará, à s 20h, na mesa Sonhos de Outra Terra IndÃgena, na Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei), com Sidarta Ribeiro, Hanna Limulja e Jean Tible. Davi Kopenawa estaria nesta conversa, se não tivesse contraÃdo o coronavÃrus.
Quanto à sua próxima pesquisa de campo, Nastassja diz que a América Latina pode ser o destino.
Veja a programação de sábado da Flip
Sábado, 26
10h
Mesa 12: Cidades e floresta
O músico paratiense LuÃs Perequê, a educadora, filósofa e artesã Cris Takuá e o lÃder e cineasta indÃgena Carlos Papá, ambos do povo Guarani Mbya, trazem os saberes ancestrais e práticas locais para o centro do debate sobre a construção de sistemas abertos de cidade.
LuÃs Perequê (RJ)
Carlos Papá (SP)
Cristine Takuá (SP)
12h
Mesa 13: Memória Flip 20 anos
Autores que participaram das primeiras edições da Flip discutem os rumos, produções e movimentos dos últimos vinte anos do cenário literário nacional e internacional.
Pauline Melville (Guiana)
Bernardo Carvalho (RJ)
15h
Mesa 14: Diamante Rubro
As autoras reunidas aqui desviam-se da simplificação e se abrem a ambivalências. Elas ressignificam a ideia de narrar os acontecimentos, inspirando um exercÃcio do ofÃcio literário que está em constante combate com a realidade. Com linguagens construÃdas à luz de suas experiências, elas lançam reflexões sobre o papel da arte e a força da escrita.
Annie Ernaux (França)
Veronica Stigger (RS)
17h
Mesa 15: Desterrando o susto
A mesa propõe o encontro entre duas autoras que escrevem sobre solidão, ruptura e travessias. Com desejo e bravura, em viagens pelo mar e pela terra, elas incentivam a criação de novos espaços para criação e imaginação do público.
Nastassja Martin (França)
Tamara Klink (RJ)
19h
Mesa 16: Entrar no bosque de luz
No calor do giro decolonial e na revisão profunda de posições secularmente arraigadas sobre gênero e raça, esta mesa propõe o encontro de grandes talentos narrativos e perspectivas sócio-históricas diversas, de modo a pensar como a escrita constitui um espaço para revelar o protagonismo invisibilizado de populações oprimidas na tessitura do cotidiano.
Luiz Mauricio Azevedo (RS)
Saidiya Hartman (EUA)
Rita Segato (Argentina)
21h
Mesa 17: Palavra livre
A mesa panlusófona responde à emergência de novas vozes, à s margens dos espaços clássicos de consagração literária, a sua força lÃrica, a um só tempo poética e polÃtica. Ao mesmo tempo, em diálogo com outras linguagens, a mesa contempla a performance e a memória do corpo, que se reafirmam nas artes dramáticas e na própria escrita.
Alice Neto de Sousa (Portugal)
Lázaro Ramos (BA)
Midria (SP)
Fonte: Estadão Conteúdo