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03/02/2023 08h10

Gloria Maria foi repórter pioneira na TV e na luta contra racismo

Entre as inúmeras histórias que gostava de relembrar, a jornalista e apresentadora Gloria Maria, que morreu na quinta, 2, aos 73 anos, de metástase cerebral proveniente do câncer de pulmão, destacava duas.

Na primeira, mais dolorida, envolvia o ex-presidente João Baptista Figueiredo (1918-1999): "Foi quando ele fez aquele discurso dizendo 'eu prendo e arrebento'. Na hora, o filme acabou e não tínhamos conseguido gravar. Aí eu pedi: 'Presidente, é a TV Globo, o Jornal Nacional, será que o senhor poderia repetir? Problema seu, eu não vou repetir', disse Figueiredo. Onde eu chegava, o ex-presidente dizia para a segurança: 'Não deixa aquela neguinha chegar perto de mim'", relembrou ela, em depoimento à Memória Globo.

Em outro momento, a tragédia também parecia anunciada: Gloria se preparava para entrevistar Madonna, quando soube que teria apenas 4 minutos. O nervosismo aumentou quando descobriu que a cantora havia debochado de Marília Gabriela e sua forma de falar em inglês. Diante da diva, Gloria foi direta: "Madonna, eu tenho quatro minutos, vou errar no inglês, estou assustada, acho que já perdi os quatro minutos", disse. Madonna abriu um sorriso e, virando-se para sua equipe, determinou: "Deem o tempo que ela precisar".

Primeira repórter negra a se destacar na TV brasileira, Gloria Maria não tinha uma técnica específica de trabalho. "Sou uma pessoa movida pela curiosidade e pelo susto. Se eu parar para pensar racionalmente, não faço nada. Tenho de perder a racionalidade para ir, deixar a curiosidade e o medo me levarem, que aí eu faço qualquer coisa", contou ela ao Memória Globo, departamento da emissora que arquiva histórias de seus profissionais.

Barreiras

Essa disposição alimentada pela curiosidade e até pelo susto despertava uma rara cumplicidade com o espectador, que confiava fielmente em suas informações. Isso permitiu que Gloria derrubasse barreiras e consolidasse seu pioneirismo na televisão, especialmente na Globo, onde trabalhou praticamente durante toda a sua carreira.

Foi a primeira repórter, por exemplo, a entrar ao vivo no Jornal Nacional na transmissão da primeira matéria em cores do noticiário, em 1977, mostrando o movimento de saída de carros do Rio, em um fim de semana.

No mesmo ano, cobriu a posse do presidente americano Jimmy Carter em Washington. Logo foi destacada para coberturas relevantes, como a Guerra das Malvinas (1982), a invasão da embaixada japonesa no Peru por um grupo terrorista (1996), Olimpíada de Atlanta (1996) e a Copa da França (1998).

Selinho

Na emissora, tornou-se conhecida pelas matérias especiais e viagens a lugares exóticos, especialmente a partir de 1986, quando passou a integrar o Fantástico, programa do qual foi apresentadora entre 1998 e 2007. Gloria entrevistou celebridades como Michael Jackson, Harrison Ford (de quem enxugou o rosto), Freddie Mercury, Nicole Kidman, Leonardo DiCaprio e Mick Jagger, com quem trocou um selinho.

Gloria foi ainda importante em assuntos decisivos como raça. Primeira repórter negra a se destacar na televisão brasileira, ela se orgulhava de ser uma das pioneiras a usar a Lei Afonso Arinos, de 1951, que incluía a discriminação racial entre as contravenções penais.

Ela contou, em uma postagem no Instagram de 2019, que, ao ser impedida de entrar pela porta da frente em um hotel no Rio, em 1970, processou o gerente, que dizia que negro não poderia entrar por ali. Gloria chamou a polícia, o gerente foi processado e, por ser estrangeiro, acabou expulso do País.

Para pessoas pretas, principalmente as mulheres, ver Gloria no Jornal Nacional, entrevistando políticos e celebridades, era motivo de orgulho e de um sonho possível. Seu pioneirismo foi reconhecido como inspiração. "Gloria mostrou que uma mulher preta podia estar na TV", diz a apresentadora Cris Guterres, da TV Cultura.

Apesar da disposição física, sua saúde começou a fraquejar. Em 2019, Gloria foi diagnosticada com um câncer de pulmão, tratado com sucesso com imunoterapia. Sofreu metástase no cérebro, tratada em cirurgia, também com êxito inicial. Em meados do ano passado, a jornalista iniciou mais uma fase do tratamento para combater novas metástases cerebrais, mas que não surtiu o efeito esperado e Gloria morreu na manhã de quinta-feira.

Deixou duas filhas, Maria, de 15 anos, e Laura, 14, que foram adotadas em 2009, na Bahia, onde a jornalista esteve para realizar trabalho voluntário em um orfanato.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Fonte: Estadão Conteúdo
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