29/11/2020 13h12
Martinho da Vila volta ao mundo dos orixás para cantar Rio que ninguém destrói
Aos 82 anos, Martinho da Vila volta a fazer o samba dos terreiros que marca sua carreira desde 1969. Seu disco mais recente, Martinho 8.0, veio em 2019 belo, mas melancólico, respeitando o tempo de um octogenário que parecia entrar em uma fase de menos partidos e mais reflexões, sem a euforia das festas. Mas agora, com Rio Só Vendo a Vista, uma frase com dois ou três significados complementares, ele volta à cadência firmada na pele do pandeiro, quase um gênero seu dentro do próprio samba.
O álbum é uma homenagem ao Rio, com 12 faixas sendo cinco inéditas e algumas praticamente desconhecidos. Outra marca é a reafirmação da famÃlia casa-de-bamba que conseguiu criar, em que nem todo mundo bebe, mas todo mundo samba. As faixas Vila Isabel Anos 30, Rio Chora o Rio Canta, Umbanda Nossa e Assim Não Zambi têm a colaboração de um coral formado por sete dos oito filhos de Martinho. A caçula Alegria é uma delas, em sua estreia nos discos do pai.
Há uma série de outros simbolismos que marcam essa chegada de Martinho à s plataformas digitais em pleno Dia da Consciência Negra. Ao homenagear uma cidade à espera da decisão eleitoral para saber quem será seu próximo prefeito, o tributo vira protesto. "O Rio à s vezes é um grande abacaxi, de São Conrado a São João do Meriti", ele diz em Rio Só Vendo a Vista. Com um pensamento de enredo carnavalesco, O Rio Chora, O Rio Canta lamenta a perda da condição de Capital Federal do PaÃs para BrasÃlia, em 1960. E a bela Menina de Rua, em parceria com Rildo Hora, sobre uma marcação de tambores do samba reggae que deu a base à axé music, narra a vida de uma garota sem-teto. Martnália canta a voz da criança abandonada e Martinho atua fazendo perguntas a ela. Não se trata de um samba inédito, mas quase. Ele foi feito para a trilha sonora de Você Não Me Pega, de 1995, um musical infantil assinado em parceria com Rildo. A letra acabou ficando pesada demais, mas foi incluÃda no disco de 1995.
Martinho vive em um paÃs que tem oficialmente renegado a importância das culturas africanas em sua formação. E então, ele lembra das provocações do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Nascimento de Camargo, que o chamou de "vagabundo" que deveria "voltar para o Congo". "Esse homem quer ser branco num paÃs em que somos todos mestiços." Sobre a não realização do carnaval no inÃcio de 2021, mas no meio do ano, ele diz: "Só deveria haver blocos. Deveriam suspender o carnaval da avenida e só realizá-lo em 2022. Imagina ter de fazer uma festa dessa em seis meses. As escolas não vão aguentar".
A influência das religiões afro-brasileiras é mais uma vez definitiva em seu repertório. Umbanda Nossa é uma inspiração recente, feita só com atabaques. Uma nova homenagem à religião e talvez tão forte quanto Festa de Umbanda, de 1974, que Martinho recebeu em uma gira, ensinada por um preto velho. Ao contrário do candomblé, corrente de ascendência africana direta, a umbanda foi criada no Rio. "Umbanda é mais light, mais romântica, não conta com o sacrifÃcio de animais", diz, levantando um vespeiro que poderia ir longe. "Mas veja, todo animal que comemos é sacrificado. E, pelo que sei, mesmo os rituais de candomblé oferecem aos orixás as partes que não são consumidas pelos homens, como orelhas e rabos. As pessoas acabam levando as partes boas para casa. Tem até fiscal da prefeitura que vai a giras esperar o ritual acabar para levar um pouco pra casa."
Ouvir Martinho é entrar nesse mundo e se ver obrigado a estudá-lo para não passar vergonha. Um universo não catalogado oficialmente que mesmo lideranças raciais só conhecem por ouvir dizer. O samba O Caveira, por exemplo. Martinho ouvia sua mãe dizer que ele não deveria dever nada a ninguém. "O cara a quem você dever será um caveira em sua vida." Mesmo sem explicitar na letra, caveira também é um exu. Exu Caveira. E foi de sua figura que a mãe de Martinho tirou a frase.
Bamba.
Sete dos oito filhos do cantor participam das gravações de um álbum feito para o Rio e, por tabela, à umbanda
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Fonte: Estadão Conteúdo