25/10/2019 08h50
Mostra: 'Três Verões' tem Regina Casé em outro papel marcante
Há uma relação entre a Val de Que Horas Ela Volta e a Madá de Três Verões além do fato de ambas serem interpretadas por Regina Casé? No filme de Anna Muylaert, Val é uma doméstica de inÃcio conformada, que recebe em casa sua filha rebelde vinda do Recife. Madá ocupa cargo mais alto: é uma espécie de governanta da mansão à beira-mar de uma famÃlia carioca influente. Mas ambas são trabalhadoras domésticas. As duas estabelecem um tipo de relacionamento assimétrico com seus patrões, no estilo de sociedade de classes à brasileira em seu formato Casa Grande & Senzala.
Que Horas Ela Volta? mira o fenômeno da ascensão da classe C nos governos Lula, com estudantes pobres disputando vagas na universidade com seus colegas ricos ou de classe média, graças à s polÃticas de inclusão. Em Três Verões, que será exibido nesta sexta-feira, 25, na 43ª Mostra Internacional de Cinema, se estuda o virar dessa página emancipatória com a chegada do terremoto polÃtico causado pela Operação Lava Jato.
Em Três Verões, Sandra Kogut mostra os efeitos dessa instabilidade nas classes populares. O ambiente é o da burguesia chique do Rio de Janeiro, representada pelo casal Edgar e Marta (Otávio Muller e Gisele Fróes), que costuma receber os amigos na mansão de Angra dos Reis. Madalena, ou Madá (Regina Casé), é a regente do corpo de funcionários - faxineiros, cozinheiras, motoristas, porteiros, etc. - que trabalha para o casal.
Boa empreendedora, Madá alimenta também um sonho pessoal, o de estabelecer-se com um quiosque e ganhar dinheiro. Precisa comprar o terreninho onde se encontra o quiosque e, para tal, pede um empréstimo do patrão. Ele vem, de maneira surpreendente. Edgar propõe comprar o velho telefone celular de Madá, exatamente pelo dinheiro que ela precisa para dar entrada no terreno. Um negócio da China, pelo menos é o que parece em princÃpio.
Como sugere o tÃtulo, a história se desenvolve em três verões sucessivos - os de 2015, 2016 e 2017. Tempos de convulsão polÃtica no PaÃs, porém pela ótica do, digamos assim, "andar de baixo" da sociedade. Se o primeiro verão do filme é marcado pela opulência, pela sensação de que o dinheiro corre fácil, o que falar do segundo e do terceiro verões, quando os patrões somem, justamente com os convidados de sempre, e a mansão fica ao deus-dará?
É então que entra o espÃrito empreendedor de Madá, que tenta manter a casa em funcionamento, chegando a alugá-la como set de filmagem de comerciais. Ou promovendo tours de barco para mostrar aos curiosos as outras mansões abandonadas por seus patrões estarem "ocupados" pela operação.
Ao entregar o protagonismo a Regina Casé, Sandra Kogut escolhe o registro cômico para abordar essa tragédia polÃtica à brasileira. Com o PaÃs indo para o abismo, só o humor de Madá parece fornecer aquela famosa luz no fundo do túnel. E esta seria a infindável capacidade de improvisação do povo brasileiro, seu sentido de invenção, a técnica conhecida de fazer do limão uma limonada. Sem Casé, o filme seria outro. E não teria essa luz em que a atriz é pródiga ao interpretar - de coração - os tipos populares. Ou seja, o que de melhor existe no Brasil, a sua verdadeira elite.
O legado de Tarkovksy. Outra pedida é Andrey Tarkovsky: Uma Oração de Cinema, documentário dirigido pelo próprio filho do grande cineasta russo. No filme, percorre-se a carreira de Tarkovksy (1932-1986), por meio de sua narração em off, gravada em inúmeras entrevistas e ilustrada por trechos de filmes ou registros domésticos.
Tarkovsky é revisitado por meio dos seus filmes, A Infância de Ivan, O Espelho, Solaris, Stalker, e os feitos no exÃlio, Nostalgia e O SacrifÃcio. A busca pelo poético, pelo simbólico e pelo espiritual estabelece um distanciamento crescente entre o artista e a estética oficial da então União Soviética.
Tarkovsky afasta-se do realismo e parte para uma dimensão francamente religiosa. Seus Ãcones máximos no campo artÃstico deixam claro o que ele pretende com seu cinema: Leonardo Da Vinci, Bach, Tolstói, Bresson. São artistas do sublime. Assim como Tarkovsky tentou ser e conseguiu em diversas de suas obras. Atingir a dimensão metafÃsica e filmar aquilo que não se vê. Em particular, a inexorável passagem do tempo, que ele coloca em contraste com a imortalidade da alma e a crença em um ser superior.
Documentários brasileiros
Passagens e O Mês que Não Terminou têm em comum o fato de seus autores serem pessoas mais acostumadas ao trabalho teórico que ao manejo das câmeras. Em Passagens, os professores Lúcia Nagib e Samuel Paiva estudam os efeitos benéficos ao cinema vindos do diálogo com outras artes, tais como a música e a literatura. Em O Mês Que Não Terminou, o filósofo Francisco Bosco e o artista plástico Raul Mourão buscam nas manifestações de 2013 o solo de compreensão para a distopia brasileira atual. Dois filmes indispensáveis.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Fonte: Estadão Conteúdo