04/03/2019 07h10
Segredos da escrita
A obra de Euclides da Cunha (1866-1909) inspira estudos eternos. Próximo homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que acontece em julho, o autor de Os Sertões apresenta uma radicalidade na literatura e cultura brasileiras. Sobre seu trabalho, debruçam-se diversos pesquisadores, como Francisco Foot Hardman, que coordena o volume Ensaios e Inéditos (Editora Unesp), organizada por Leopoldo Bernucci e Felipe Pereira Rissato. Trata-se do conjunto de 31 composições assinadas por Euclides, cuja primeira tem a data de 1883, quando ele tinha apenas 17 anos, e a última é de 1909, ano de sua morte. Algumas crônicas foram publicadas em O Estado de S. Paulo, jornal para o qual o escritor colaborou regularmente.
Além do ineditismo em livro de alguns textos - e de outros serem pouquÃssimos conhecidos -, a missão desse trabalho é a de mostrar como o talento de Euclides não se limitava ao Sertões, certamente uma das mais importantes obras da literatura brasileira. "Julgo tão importante como outro livro de Euclides, À Margem da História (1909), publicado postumamente e que a editora Unesp deverá lançar uma edição crÃtica e na qual será possÃvel constatar sua radicalidade no âmbito da literatura e da cultura brasileira", observa Hardman.
Entre as 31 composições, há desde fragmentos (punhado de frases sobre determinado assunto ao qual Euclides não pode ou não quis retomar) até anotações e manuscritos que resultariam em textos acabados como Contrastes e Confrontos (1907), Peru versus BolÃvia (1907) e o já lembrado À Margem da História. Uma das questões mais recorrentes na obra de Euclides é a relação entre civilização e barbárie - assim, quando de sua viagem ao Alto Purus, no Acre, região fronteiriça com o Peru, em 1905, época de auge da economia extrativista da borracha, o escritor observou o trabalho semiescravo a que eram submetidos os seringueiros, além da brutalidade reservada aos Ãndios.
À época, Euclides foi designado para liderar a comitiva mista brasileiro-peruana de reconhecimento da região. E, além de cumprir com os objetivos técnicos da missão (como mapeamento da área), ele coletou dados para uma análise histórica e social do extremo oeste da Amazônia. Sobre Ensaios e Inéditos, Hardman respondeu as seguintes questões.
Quais detalhes sobre o trabalho de Euclides da Cunha são apresentados nessa seleção que não é possÃvel ver (ao menos, tão nitidamente) em Os Sertões?
Haveria vários aspectos a considerar. Mas, de forma sintética, penso na dimensão do interesse internacionalista amplo que o autor revela, em vários dos textos desse volume, não só no âmbito das questões da América Latina, mas de toda a geopolÃtica mundial, muito além do apregoado "nacionalismo rÃgido" que muitas leituras apressadas lhe conferem. Sua resenha original, por exemplo, sobre o romance Quatrevingt-treize, de Victor Hugo (1874), manuscrita num caderno de cálculo infinitesimal na Escola Militar, por volta de 1885, converte-se em libelo, em profissão de fé romântica nos ideais da Revolução Francesa, que já nos tinha chamado a atenção quando compilávamos sua poesia de juventude. Seu interesse pelas regiões interiores e sua articulação com os polos hegemônicos da polÃtica, da economia ou da cultura faz dele um dos primeiros intelectuais brasileiros a questionar as estruturas autoritárias mais arcaicas herdadas da colônia e do império e, sobretudo, a exclusão de muitos de seus espaços e comunidades humanas da "história oficial". Quanto ao estilo, vale lembrar que aqui nós temos textos curtos, numa forma talvez a mais recorrente em Euclides (Os Sertões constituindo, a rigor, uma exceção). Seu vÃnculo forte com o jornalismo, seja como cronista ou articulista de fundo, é algo que necessitaria ser ainda melhor estudado.
Pelos textos, nota-se Euclides em constante ato de autocrÃtica sobre assuntos diversos. É possÃvel dizer, então, que esses escritos de alguma forma até ajudam a ressaltar aspectos biográficos?
Bem, para Euclides certamente valeria a máxima borgiana: no fundo, publicamos livros para parar de revê-los... Ele era particularmente obsessivo com as revisões intermináveis que fazia, mesmo quando o livro já estava no prelo. Sem dúvida, tanto nesse volume quanto em sua Poesia Reunida emerge uma dimensão autobiográfica inegável, à s vezes mais explÃcita, ou implÃcita. Certamente, isso vai despontar com força nos volumes seguintes da série que estamos preparando, relativos à sua correspondência ativa e passiva, em dois tomos remissivos. O trabalho quase todo inédito de recuperação de sua correspondência passiva devemos em grande parte à pesquisa primária incansável de Rissato.
Interessante também é forma crÃtica como Euclides via as tentativas de uma restauração da Monarquia e também apontava as rachaduras da República, não?
Euclides foi um abolicionista e republicano de primeirÃssima hora, engajado como jovem cadete radical, inclusive com simpatias declaradas pelo socialismo reformista mais afim aos inÃcios da social-democracia europeia, o que, digamos, se no Brasil de hoje representa uma posição avançadÃssima, imagina, então, no final do século 19. Mas, como já apontaram com argúcia, entre outros, nossos saudosos amigos euclidianistas Frederic Amory e Roberto Ventura, ao contrário do que leituras banais sugeriram, Euclides, já em 1894, descontente com os rumos autoritário-militares da República, entra em rota de colisão com a carreira militar, é transferido abruptamente para Campanha, em Minas Gerais, e, em 1895, inicia seus trabalhos como engenheiro de obras públicas no Estado de São Paulo, desengajado do Exército, como tenente da reserva. E como dissidente discreto, mas efetivo, podemos acrescentar.
Euclides será o escritor homenageado da Flip desse ano. Um dos motivos é o fato de Os Sertões ser considerado um dos primeiros clássicos brasileiros de não ficção. Observando nossa atualidade, qual importância tem essa homenagem? E quão Os Sertões é atual nesse tempo?
Euclides é um dos maiores escritores da lÃngua portuguesa de todos os tempos. Nesse sentido, todas as homenagens serão sempre bem-vindas, necessárias e, esperemos, renovadas. Sua modernidade literária pode ser vista nos gêneros hÃbridos adotados, na temática social inovadora e na sua desconfiança visceral em relação ao beletrismo e ao bacharelismo de nossas elites. A atualidade de Os Sertões pode ser buscada de várias maneiras. Vou destacar o que me parece o mais importante. Quando setores que passaram a nos governar podem tornar mais vulneráveis nossos ecossistemas e os povos que lá habitam (indÃgenas, ribeirinhos, quilombolas, camponeses, entre outras comunidades), lembrar das "loucuras e crimes das nacionalidades", com que Euclides conclui sua obra-prima, é lembrar que 20 mil sertanejos, nossos irmãos - como sempre reitera o escritor -, foram massacrados pelo Estado e pelo Exército de nossa jovem República. Isso deveria sempre ser relembrado, para que não se justifiquem outros crimes.
Fonte: Estadão Conteúdo