22/11/2021 10h01
Trintões, álbuns de Nirvana e Pearl Jam soam 'longe e próximo' do pop
Seattle era longe demais para ser suspeita de qualquer insurgência. Erguida sobre sete colinas e banhada de muitas águas na beira oeste dos Estados Unidos, tinha o azul do céu escondido por mais de 220 dias ao ano, quando o frio soprado pelo Alasca tornava tudo cinza e fazia os garotos vestirem jaquetas sobre as camisas de flanela. A 4,6 mil quilômetros de Nova York, quase 2 mil de Los Angeles, a Cidade das Chuvas orgulhava os mais velhos com a sede da Boeing garantindo trabalho desde 1916 e a primeira Starbucks valorizando o café da região desde 71. Aos filhos entediados, restava armar a bomba.
E ela explodiu em 1991. Há 30 anos, dois álbuns feitos pelo mesmo material humano, jovens revoltados por fora, niilistas por dentro e invisÃveis em um paÃs que sequer parecia ser deles, provocariam um tremor no império que o showbiz havia construÃdo para si.
O sistema de controle sobre o que seria ou não um artista, filtrado e regido pelas gravadoras transcontinentais, estava mais organizado, milionário e excludente do que nunca quando os discos Nevermind, do Nirvana, e Ten, do Pearl Jam, soaram o alarme.
A ruptura já vinha sendo tomada por grupos locais como Melvins, Mudhoney, Soundgarden, Green River, Skin Yard e Alice in Chains, além do próprio Nirvana, que lançou seu primeiro álbum sem maior furor pelo selo Sub Pop, Bleach, em 1989. Mas só em 1991 o barulho começou a ser ouvido.
Os 30 anos de distância deixam tudo um pouco mais interessante. Afinal, sabe-se bem, não se tratava apenas de música. A cena de Seattle, como uma reedição despolitizada do punk de meados dos anos de 1970, vinha para implodir tudo o que se entendia como rock mainstream, algo que poderia incluir bandas que eles mesmos ouviam.
Kurt Cobain e Eddie Vedder, a seus estilos, detestavam o teatro em que os eleitos à imortalidade eram submetidos pela indústria e usariam suas aparições para torpedeá-los: a figura do guitar hero revitalizada por Slash, a imagem do vocalista sexy reservada a Jon Bon Jovi, os espetáculos grandiosos do Iron Maiden, os solos de bateria do Rush, as poses do Poison, as lÃnguas do Kiss, as entrevistas, os autógrafos, a fama e a idolatria. Tudo uma enorme e absurda m... em que o rock foi terminar.
Pop Metal
Kurt e Eddie podem ser extremos de um mesmo grunge, o reativo indomável e o resiliente reservado, mas Nevermind e Ten, ainda mais quando se ouvem sons realmente primitivos de Seattle como Touch me I'm Sick, do inegociável outsider Mudhoney, ou Swallow My Pride, do Green River, Smells Like Teen Spirit e Black soam (que maldição) bem pop. Assim como eles abrem as portas do mundo ao som do grunge, podem também guardar algo de despedida das ruas sujas e anti indústria pela qual também gritaram.
Uma dicotomia que responde pelo nome de produção. Buth Vigh, escolhido para fazer a sonoridade de Nevermind engordar à base de distorções de guitarra e cruezas de vocal, ia bem até que a supervisão da produção passou às mãos de Andy Wallace, um homem mais velho e experiente nas sujeiras do Bad Religion e nas limpezas de Paul McCartney, mas sobretudo sábio em equilibrar as vontades de salvar o mundo com a necessidade de pagar as contas.
"O som de Seattle resgatou a gravação da sujeira, mas Nevermind chega mais polido e arquitetado, quase que como um grunge de butique", diz o jornalista e pesquisador Bento Araújo, autor da série de livros Lindo Sonho Delirante.
Algo que se encontra com a fala do próprio Cobain, anos depois do lançamento do LP: "Olhando para trás, eu fico constrangido. Nevermind está mais perto de um disco de Mötley Crüe do que do punk rock."
Se era o preço a se pagar por tudo o que viria em troca, justo. A habilidade de Vigh e Wallace ao reprogramarem as linhas nervosas do Nirvana conseguiu manter a alma de Seattle esclarecendo um discurso musical baseado na alternância rápida e bipolar entre melodia assobiável e barulho ensurdecedor, organizando a guitarra de Kurt, dando clareza à bateria de Dave Grohl e, quando não dobrando o baixo de Krist Novoselic, o colocando em destaque em compassos estratégicos de Come As You Are, Lounge Act e Lithium. Em condições para se chegar às rádios e à MTV - mas ok, ninguém precisava dizer isso perto de Kurt - o disco estava pronto para ir às prensas.
As 80 mil cópias iniciais enviadas à s lojas em 24 de setembro de 1991 sumiram em dias. Depois de perÃodos vendendo 300 mil exemplares por semana, e mesmo antes de Smells Like Teen Spirit abrir lugar para o segundo single, Come As You Are, o álbum tomou o posto de Michael Jackson despachando Dangerous do topo da parada da Revista Billboard no inÃcio de 1992.
As listas de melhores da história o colocaram em posições de destaque e, em março de 1999, os números chegariam a 10 milhões de cópias vendidas.
Ãdolo mergulhado em heroÃna, cercado por fãs e jornalistas, Kurt Cobain empunhou o cetro do mesmo sistema que só quis implodir. Ao contrário de Eddie Vedder, que criou um bunker para si e um jeito de romper e usar a mÃdia ao mesmo tempo para manter o Pearl Jam vivo, ele não resistiu.
No dia 8 de abril de 1994, seu corpo foi encontrado sem vida em Seattle com uma espingarda e uma carta ao lado que dizia: "Há muitos anos não venho sentindo excitação ao ouvir ou fazer música, bem como ler e escrever. Minha culpa por isso é indescritÃvel em palavras... O fato é que não consigo enganar vocês, nenhum de vocês. Simplesmente não é justo para vocês e para mim. O pior crime que posso imaginar seria enganar as pessoas sendo falso e fingindo que me divirto".
Para o jornalista André Forastieri, editor-chefe da Revista Bizz à época do surgimento do grupo, foi neste dia que o grunge deixou seu maior manifesto. "Se Kurt Cobain estivesse vivo e gordo, como nós, não faria sentido."
E agora? Grupos como Nirvana e Pearl Jam soariam como tiozões clássicos do rock para as novas gerações? "Toda a música passou a ser simultânea na era do streaming. Dua Lipa, Bessie Smith e Kurt Cobain são presentes permanentes para um jovem de 15 anos. Quem vai ficar para a história, para eles, não é o mais importante." As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Fonte: Estadão Conteúdo