19/08/2019 08h10
Ursula Le Guin tem clássico relançado
Quando a escritora americana Ursula K. Le Guin iniciou sua carreira, entre o fim dos anos 1950 e o começo dos anos 1960, algo em torno de 10% a 15% dos autores de ficção cientÃfica eram mulheres, de acordo com um estudo do pesquisador Eric Leif Davin. Talvez isso explique por que ela se debruçou tão seriamente sobre a questão de gênero em seu livro mais conhecido, A Mão Esquerda da Escuridão, publicado em 1969 e que está ganhando uma nova edição comemorativa de 50 anos pela editora Aleph.
A Mão Esquerda da Escuridão narra a viagem do diplomata terráqueo Genly Ai ao planeta Gethen. Sua tarefa é convidar os habitantes desse mundo para uma confederação interplanetária da qual diversos outros povos espalhados pelo espaço fazem parte - essa espécie de "Organização dos Planetas Unidos" está presente em outras obras relevantes da autora, como em Os DespossuÃdos, romance sobre a Guerra Fria ambientado entre dois planetas que se orbitam, um capitalista e outro comunista, evidenciando os lados sombrios de ambos os sistemas econômicos.
A missão diplomática de Genly Ai parece simples, até que ele de fato entra em contato com os habitantes de Gethen e compreende como eles são. Embora semelhantes em quase tudo à fisiologia dos seres humanos, essas pessoas têm uma caracterÃstica fundamental para o romance: eles são ambissexuais, ou seja, podem assumir ambos os sexos, masculino e feminino. Quando eles entram no perÃodo reprodutivo, tornam-se machos ou fêmeas - sem poder escolher ou mesmo prever qual condição vão desenvolver naquele cio - e acabam desempenhando o papel masculino e feminino diversas vezes ao longo da vida, apenas para fins sexuais e reprodutivos.
Em reflexões posteriores, Le Guin admitiu que seu romance tinha um tom heteronormativo demais para o seu gosto - a anatomia dos habitantes de Gethen não admite gêneros neutros, fluidos ou qualquer variação queer, tampouco são mencionados casos de homossexualidade entre os personagens.
De qualquer forma, feita essa ressalva, a biologia peculiar de Gethen define a temática tratada em A Mão Esquerda da Escuridão: a enorme influência do gênero na vida não sexual das pessoas. Por meio de personagens que não se assumem nem como homens nem como mulheres, é possÃvel perceber o comentário de Le Guin sobre o machismo no nosso mundo.
Toda a reflexão do romance, sempre pelas entrelinhas, se dá pelo contraste dessa sociedade - que é, por definição, livre de machismo, uma vez que não há homens e mulheres permanentes - com a nossa, em que o gênero de uma pessoa define todas as instâncias de sua vida, ainda que essas facetas não tenham nada a ver com sexo. É curioso, por exemplo, ver como Genly é uma aberração para os habitantes de Gethen por ter um gênero definido e, portanto, estar pronto para acasalar a todo momento, algo impensável no planeta e que o faz ser visto como um pervertido.
A Mão Esquerda da Escuridão questiona dessa forma os papéis sociais atribuÃdos aos gêneros, indicando, por exemplo, que sem o Ãmpeto masculino à violência, não haveria guerras - Gethem passa por um conflito duradouro entre as duas grandes nações que dividem a superfÃcie do planeta, mas essa disputa nunca chega à s vias de fato, sendo travada de forma não violenta, talvez uma metáfora da Guerra Fria, que estava em seu auge na época.
Apesar de imputar a natureza bélica ao lado masculino da humanidade, Le Guin, em uma das últimas entrevistas de sua vida, concedida ao jornal O Estado de S. Paulo em 2017, demonstrou uma postura abertamente pacifista a respeito da questão de gênero. Ela afirmou que não considerava justo rotular como uma "luta" a busca por direitos igualitários entre homens e mulheres: "Chamar de 'luta' imediatamente faz minha mente assumir que essa é uma batalha de mulheres contra homens. Não é nada desse tipo. É uma tarefa para todos nós, uma árdua tarefa. Tanto mulheres como homens têm muito trabalho a fazer a fim de ganhar e manter liberdade, igualdade e justiça para todos".
Essa fala não poderia resumir melhor o cerne de A Mão Esquerda da Escuridão, que continua atual meio século depois de seu lançamento.
Fonte: Estadão Conteúdo